O Albatroz Racista

A ciência social, Jörg Haider e a resistência

O texto abre com uma perspectiva sucinta da situação austríaca depois da tomada de posse do novo governo de coligação com a participação da extrema-direita populista. Tanto esta situação como a pronta reacção dos restantes estados membros da UE só podem entender-se num quadro mais amplo, em que a questão do racismo assume uma absoluta centralidade. Partindo desta questão, o artigo reflecte sobre a incapacidade que a ciência social tem revelado para fornecer instrumentos adequados à compreensão da evolução do sistema-mundo desde 1989; só uma outra ciência social poderá pôr a descoberto as raízes profundas dos privilégios racistas de que esse sistema-mundo está impregnado e que abrangem não só todas as suas instituições como também as estruturas do saber e as próprias forças da resistência.

“Deus te salve, velho Marinheiro,
Dos demónios que te embargam a voz! ‹
Por que me olhas assim?” ‹ “Com um tiro de besta
Eu matei o albatroz.”

Samuel Taylor Coleridge,
The Rime of the Ancient Mariner

No poema de Coleridge, um barco acaba vogando à deriva, empurrado pelos ventos até paragens inóspitas. O único conforto dos marinheiros é um albatroz, com o qual partilham a comida. Mas o marinheiro de Coleridge abate-o por qualquer razão desconhecida ‹ quiçá por mera arrogância. Em resultado disso, todos os ocupantes do barco irão sofrer. Os deuses punem o infausto acto. Os outros marinheiros penduram o albatroz em volta do pescoço do seu companheiro. Assim, o albatroz, símbolo da amizade, torna-se, deste modo, símbolo de culpa e de vergonha. O marinheiro acaba por ser o único sobrevivente da viagem. E passa o resto da vida obcecado pelo seu acto. Em vida, o albatroz é o “outro”, que se nos abriu em terras estranhas e longínquas. Morto, pendurado em volta do nosso pescoço, ele é toda a nossa herança de arrogância e de racismo. E vivemos obcecados por ele, incapazes de encontrar a paz.

Há mais de um ano pediram-me que viesse a Viena falar sobre “A Ciência Social num Tempo de Transição”. A minha intervenção inseria-se no contexto de uma série intitulada “Da Necessidade do Supérfluo ‹ Ciências Sociais e Sociedade”. Aceitei com todo o gosto, pensando que iria estar nessa mesma Viena que desempenhara um papel importantíssimo na construção da ciência social a nível mundial, principalmente no período do Traum und Wirklichkeit , 1870-1930. Viena foi a terra de Sigmund Freud, figura à qual, em minha opinião, se deve o contributo individual mais importante para a ciência social de todo o século XX. Ou pelo menos Viena foi sua terra até que se viu forçado pelos Nazis a fugir para Londres no ano em que viria a morrer. Viena foi igualmente, durante uma parte significativa das suas vidas, a terra de Joseph Alois Schumpeter e de Karl Polanyi. Homens de ideias políticas flagrantemente opostas, foram ambos, em minha opinião, os dois maiores vultos da economia política do século XX, e ambos menos apreciados e menos distinguidos do que lhes era devido. E Viena foi ainda, finalmente, a terra do meu próprio mestre Paul Lazarsfeld, cuja obra Die Arbeitlosen von Marienthal ‹ um estudo efectuado com Marie Jahoda e Hans Zeisel ‹ marca o início de uma abordagem característica, em que uma investigação orientada para políticas específicas se aliava a inovações metodológicas verdadeiramente pioneiras. Era essa, pois, a Viena que eu me preparava para visitar.

Vieram então, como é sabido, as eleições austríacas, e com elas essa consequência que estava bem longe de ser inevitável: a inclusão, no governo do país, da Freiheitliche Partei Österreichs (o FPÖ ‹ Partido da Liberdade Austríaco). Os restantes Estados da União Europeia reagiram energicamente a esta mudança de regime, suspendendo as relações bilaterais com a Áustria. Pessoalmente, tive de ponderar se ainda deveria vir, e hesitei. Se aqui estou hoje, é por duas razões. Em primeiro lugar, quis afirmar a minha solidariedade com das andere Österreich, essa outra Áustria que se tem vindo a manifestar de uma forma tão visível desde que o novo governo entrou em funções. Mas em segundo lugar, e mais importante que isso, vim aqui assumir as minhas próprias responsabilidades enquanto cientista social. Fomos nós todos quem matou o albatroz. É do pescoço de cada um de nós que ele pende. E é com as nossas próprias almas e com as nossas próprias mentes que nos temos que debater se queremos expiar, e assim reconstruir, e criar um tipo de sistema histórico diferente, um sistema que esteja para além do racismo que tão profunda e perversamente afecta o mundo moderno. Daí que eu tenha dado um novo título à minha palestra: “O Albatroz Racista: a ciência social, Jörg Haider e a resistência”.

Os factos relacionados com os acontecimentos da Áustria são, à superfície, bastante simples. Ao longo de sucessivas legislaturas, a Áustria fora governada por uma coligação nacional dos dois maiores partidos do país, a Sozialdemokratische Partei Österreichs (SPÖ ‹ Partido Social-Democrático Austríaco) e a Österreichische Volkspartei (ÖVP ‹ Partido Popular Austríaco). Partidos identificados com o poder instalado, um era de centro-esquerda e o outro de centro-direita e cristão-democrata. A soma dos seus votos, outrora esmagadora, foi diminuindo ao longo da década de 90. E nas eleições de 1999 o FPÖ chegou pela primeira vez ao segundo lugar, ultrapassando assim o ÖVP, ainda que apenas por uma margem de algumas centenas de votos. As subsequentes discussões entre os dois partidos do centro com vista à formação de mais uma coligação nacional fracassaram, pelo que o ÖVP se voltou para o FPÖ na procura de um parceiro para governar. Essa decisão por parte do ÖVP causou muita preocupação num grande número de austríacos, incluindo o presidente Klestil. Contudo, o ÖVP teimou, e o governo acabou por ser formado.

A decisão causou igualmente preocupação ‹ e surpresa, acrescente-se ‹ nos dirigentes políticos dos demais Estados da UE. Estes decidiram colectivamente suspender as relações bilaterais com a Áustria, e não obstante algumas vozes se terem erguido pondo em causa a justeza desta tomada de posição, a verdade é que a UE manteve a sua atitude. O gesto da UE, por seu lado, gerou mal-estar em muitos austríacos, e não apenas entre os que apoiaram a formação do actual governo, mas inclusivamente em muitos dos que se lhe opõem. Entre estes últimos, muitos foram, de facto, os que afirmaram que a UE estava a exagerar os perigos decorrentes da inclusão do FPÖ no governo. “Haider não é um Hitler” foi uma das expressões ouvidas da parte dos defensores desta posição. Outros vieram dizer que equivalentes de Haider havia-os em todos os Estados membros da União Europeia, e em certa medida até nos respectivos governos. Daí que, ainda segundo estas opiniões, fosse hipócrita o gesto da UE ao agir como agiu. Finalmente, alguns austríacos (assim como alguns europeus) defenderam que a atitude correcta da UE deveria ser esperar para ver, e que se, com o tempo, o governo austríaco fizesse alguma coisa de repreensível, então sim ‹ e só então ‹, haveria lugar a uma tomada de posição. Entretanto, dentro da própria Áustria foi lançada uma resistência (Widerstand) que ainda está em curso.
Quero aqui tomar como objecto da minha análise, não o FPÖ enquanto força partidária e o que ele representa, mas antes a forte reacção da UE à inclusão desse partido no governo da Áustria, bem como a contra-reacção oferecida pelos Austríacos e todo o movimento de resistência. Tanto a reacção como a contra-reacção só podem ser entendidas se fizermos deslocar o foco da análise, desviando-o da Áustria propriamente dita para o sistema-mundo e para as suas realidades, assim como para aquilo que os cientistas sociais nos têm vindo a dizer sobre essas mesmas realidades. Proponho, por isso, que nos detenhamos sobre esse contexto mais amplo recorrendo a quatro molduras temporais: o moderno sistema-mundo posterior a 1989; o moderno sistema-mundo posterior a 1945; o moderno sistema-mundo posterior a 1492; e o moderno sistema-mundo posterior ao ano 2000. Trata-se, naturalmente, de datas simbólicas, mas os símbolos revestem-se, neste caso, de uma grande importância. Com efeito, eles podem-nos facilitar a discussão quer das realidades, quer da percepção das realidades. Ao fazê-lo, espero estar a expressar a minha solidariedade com a resistência austríaca e espero também estar a assumir as minhas responsabilidades ‹ tanto morais como intelectuais ‹ enquanto cientista social.

1. O Sistema-mundo posterior a 1989

Em 1989, o chamado bloco socialista desabou. Os países da Europa centro-oriental, até então manietados pela doutrina de Brejnev (e sobretudo pelos acordos de Ialta), conseguiram afirmar efectivamente a sua autonomia política relativamente à União Soviética, tratando então cada um internamente de desmantelar o sistema leninista. Volvidos dois anos, o próprio Partido Comunista da União Soviética encontrava-se dissolvido e a U.R.S.S. acabava, inclusivamente, por se desintegrar nas suas quinze unidades constitutivas. Se é certo que a história dos Estados comunistas se revelaria diferente em Cuba e na Ásia Oriental, tal facto nada iria alterar quanto às consequências que os eventos ocorridos na Europa Oriental tiveram para a geopolítica do sistema-mundo.

Desde 1989 que muita da atenção mundial se tem concentrado nestes países ex-comunistas. É incontável o número de reuniões de cientistas sociais já realizadas com o fim de debater o chamado processo de transição desses países, a ponto de hoje falarmos de “transitologia”. E nas zonas que antes constituíam a República Federal da Jugoslávia e as regiões caucasianas da União Soviética, tem-se assistido a um grande número de guerras civis extremamente devastadoras, nalgumas das quais se tem verificado o envolvimento activo de potências alheias.

Muitos cientistas sociais têm vindo a analisar esta violência mediante designações como limpeza ou “purificação étnica”, fenómeno que se assevera ser resultado de velhas hostilidades étnicas. Mesmo em Estados que lograram evitar níveis elevados de violência interna, como é o caso da República Checa, da Hungria e dos Estados Bálticos, têm-se verificado incidentes desagradavelmente indiciadores de tensões étnicas em fase de aparente ressurgimento. Ao mesmo tempo, tem-se verificado a ocorrência, em muitas regiões da África e na Indonésia ‹ para referir apenas os casos mais óbvios ‹, de guerras civis de tipo similar, seja em grande escala seja na forma de conflitos de baixa intensidade.

No mundo pan-europeu (expressão que utilizo para designar a Europa Ocidental mais a América do Norte e a Australásia, mas não a Europa centro-oriental), a análise destas guerras civis tem-se centrado na alegada fragilidade das sociedades civis destes Estados e nas incipientes preocupações destes no que concerne aos direitos humanos ao longo da sua história. A quem quer que se tenha debruçado sobre a imprensa da Europa Ocidental dificilmente terá passado despercebida a medida em que, naquilo a que se tem vindo a chamar mundo pós-comunista, a atenção a estas zonas anteriormente comunistas é, antes de mais, uma atenção centrada num dado “problema”. E o “problema” foi definido de facto como sendo a ausência, nestas mesmas zonas, daquele superior nível de modernidade supostamente existente no mundo pan-europeu.
Entretanto, é igualmente espantoso como se tem dado tão pouca atenção ‹ seja por parte da imprensa, dos políticos, e principalmente dos cientistas sociais ‹ às mudanças verificadas desde 1989 no próprio interior do mundo pan-europeu. Regimes políticos que haviam edificado a sua lógica nacional com base no facto de se acharem envolvidos numa “guerra fria” descobriram de súbito que todo o conjunto de compromissos e disposições mantido ao longo de quarenta anos se afigurava, agora, vazio de sentido, tanto para os eleitores como para os próprios políticos. E se já não havia guerra fria, para quê insistir, na Itália, num sistema de pentapartiti (instalados no seio de uma corrupção organizada ‹ a tangentopoli) construído em torno da maioria permanente formada pela Democracia Cristã? Como conseguir manter agora unido, na França, um partido gaullista, ou mesmo ‹ no caso da Alemanha ‹ a União Cristã-Democrática? Por que razão há-de o Partido Republicano dos Estados Unidos da América continuar a estar confinado pelas restrições de uma “política externa bilateral”? E qual o resultado de toda esta autoquestionação? Os principais partidos conservadores do mundo pan-europeu estão a esboroar-se, dilacerados por divisões entre os novos ultras do liberalismo económico e um conservadorismo de cariz mais social, seja do tipo que pretende que o Estado rectifique a moral degradada dos cidadãos, seja do tipo que persiste na manutenção paternalista de formas de amparo social. Ao mesmo tempo, as duas facções digladiam-se mutuamente por intermédio dos respectivos apoiantes, receosos de que, no meio da confusão, o seu rendimento e posição social sejam seriamente ameaçados.
Mas então e os partidos do centro-esquerda, a maioria dos quais se intitula social-democrática? A verdade é que também eles se encontram a braços com problemas. O desabamento dos comunismos foi de facto apenas o culminar de uma crescente desilusão relativamente à Velha Esquerda em todas as suas três versões principais ‹ os partidos comunistas, os partidos social-democráticos, e os movimentos de libertação nacional ‹, uma desilusão de resto dramaticamente assinalada pela revolução mundial de 1968. A desilusão foi consequência (e o facto nem é tão paradoxal como isso) do próprio êxito político destes mesmos movimentos, ao terem conseguido chegar ao poder em todo o mundo. Com efeito, uma vez instalados no poder, eles não se mostraram capazes de levar a cabo a sua promessa histórica de que, se um dia lograssem deter o poder do Estado, estariam não só habilitados como também determinados a construir uma nova sociedade, quer dizer, a transformar substancialmente a sociedade no sentido de um mundo mais igualitário e mais democrático. Na Europa Ocidental, dizer Velha Esquerda passou basicamente a significar o mesmo que dizer Social-Democratas. E o que aconteceu a seguir a 1968, mas muito particularmente a seguir a 1989, foi que as pessoas podem votar nesses partidos como pis aller, mas ninguém dança nas ruas quando eles ganham as eleições. Ninguém espera que eles provoquem uma revolução, ainda que pacífica. E os mais desiludidos de todos são os próprios dirigentes partidários, reduzidos a usar o discurso centrista da terceira via. Porém, esta desilusão relativamente aos partidos da Velha Esquerda fez-se acompanhar de um distanciamento em relação às próprias estruturas do Estado. Os Estados sempre foram tolerados pelas respectivas populações, e inclusivamente louvados como agentes potenciais da transformação social. Agora, no entanto, passaram a ser vistos cada vez mais como agentes de corrupção e do uso de uma força desnecessária, enfim, um fardo para o cidadão em vez de seu baluarte.

Pelo quadro aqui traçado pode ver-se que a Áustria não é senão um exemplo mais de um padrão pan-europeu mais geral. Porquê uma coligação nacional numa era pós-comunista? E porquê sequer votar em partidos que parecem, antes de tudo, interessados na Proporz? Foi neste contexto que, em 3 de Outubro de 1999, o FPÖ recebeu os seus 26,9% de votação. Trata-se, de longe, da mais alta percentagem alguma vez alcançada por um partido da extrema-direita em qualquer país da Europa depois de 1945. No ano de 1995, na França, a Frente Nacional de Le Pen teve 15,1%, o que ao tempo já constituiu um choque. Mas nessa altura, os dois principais partidos conservadores insistiram que recusariam o apoio da FN fosse a que nível fosse. E quando, nas eleições regionais de 1998, os resultados conduziram a uma situação em que os partidos conservadores só conseguiriam formar maiorias num grande número de regiões se tivessem o apoio dos membros eleitos pelas listas da FN, cinco dirigentes regionais ignoraram aquela directiva e obtiveram assim da Frente o apoio de que necessitavam para os seus governos regionais. No entanto, esses dirigentes foram de imediato expulsos dos dois principais partidos conservadores nacionais, o RPR e a UDR. Na Itália, por seu turno, Berlusconi chegou a formar governo com o apoio de Fini e da sua Alianza Nazionale, uma força política semelhante à de Haider, com a pequena diferença de que antes das eleições Fini havia renunciado expressamente ao passado neo-fascista do seu partido.

Mesmo assim ‹ perguntam insistentemente muitos austríacos ‹, por que motivo tomaram os países da União Europeia uma posição tão veemente quanto aos acontecimentos da Áustria? A resposta é, na verdade, bastante simples. Precisamente porque não são muito diferentes da Áustria, todos eles tiveram receio de vir a ser confrontados com opções idênticas no futuro próximo, e de se sentir igualmente tentados a seguir os passos do ÖVP. Foi, em suma, o medo de si mesmos que levou a essa forte reacção por parte dos membros da UE. Simultaneamente, a contra-reacção austríaca explica-se pela incompreensão deste país relativamente ao facto de ter efectivamente pisado um risco que toda a Europa Ocidental no seu conjunto a si mesma havia imposto, não em 1999, mas já em 1945. Permita-se-me que clarifique melhor a minha posição. Pessoalmente, aprovo a decisão da UE de suspender as relações bilaterais com a Áustria. Considero que, caso não o tivesse feito, estaríamos agora inundados por uma maré ideológica capaz de despedaçar a Europa Ocidental. Contudo, também concordo que, ao tomar aquela decisão, a UE estava a incorrer numa grande hipocrisia, ou melhor, a iludir-se a si própria de uma maneira muito profunda. Para entender que isto é assim, temos que ter em consideração o sistema-mundo a partir de 1945 e não a partir de 1989.

Antes de o fazer, porém, impõe-se que diga alguma coisa mais sobre a ciência social posterior a 1989. Ela tem sido lamentável, com toda a gente ‹ independentemente, pode quase dizer-se, da orientação política ‹ a falar de uma única coisa, a globalização, como se esta fosse algo mais do que um recurso retórico passageiro na permanente luta travada dentro da economia-mundo capitalista em torno da questão de saber em que medida os fluxos trans-fronteiriços devem ser desobstruídos. Poeira para os nossos olhos. Como o é, igualmente, a infindável litania acerca da volência étnica ‹ e aí os activistas dos direitos humanos são tão responsáveis quanto os cientistas sociais. Não quer isto dizer que a violência étnica não seja uma realidade terrível e aterradora, mas tão-somente que de modo algum ela se confina a uns quantos “outros” considerados menos afortunados, menos sábios, e menos civilizados. Pelo contrário, ela constitui o resultado absolutamente normal das desigualdades profundas e crescentes no interior do sistema-mundo, e não pode ser enfrentada pelo recurso a meros exercícios de exortação moral, nem através de uma ingérence por parte dos puros e mais avançados, em investidas pelas zonas controladas pelos impuros e mais atrasados. A ciência social a nível mundial tem-se revelado incapaz de nos dar instrumentos úteis para a análise do que tem acontecido no sistema-mundo desde 1989, ou seja, instrumentos úteis para a compreensão cabal da realidade austríaca contemporânea.

2. O Sistema-mundo posterior a 1945

Em 1945, a experiência e o horror nazis chegavam ao fim. Não fora Hitler quem inventara o anti-semitismo, nem tampouco os Alemães. De facto, o anti-semitismo era há muito a principal expressão interna do racismo profundo que caracterizava o mundo europeu, tendo na sua versão moderna sido endémico no panorama europeu ao longo de pelo menos um século. Quem a este respeito comparar Paris com Berlim por volta do ano de 1900 não dirá que Berlim fica a perder na comparação. Não houve lugar de que o anti-semitismo activo tivesse estado ausente, nem mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, nem sequer nos Estados Unidos da América.
Por que foi, então, que toda a gente se sentiu tão abalada pelo nazismo, pelo menos depois de 1945? A resposta salta à vista: por causa da Endlösung. Se bem que até 1945 quase toda a gente no mundo pan-europeu fosse aberta e alegremente racista e anti-semita, a verdade é que quase ninguém desejava que isso redundasse na Endlösung. A Solução Final de Hitler traduzia, de facto, uma total incompreensão da razão de ser do racismo no contexto da economia-mundo capitalista. O objectivo do racismo não consiste em excluir pessoas, e muito menos em exterminá-las. O objectivo do racismo consiste em manter as pessoas dentro do sistema, mas com o estatuto de Untermenschen, seres inferiores passíveis de ser explorados economicamente e usados como bodes-expiatórios políticos. O que aconteceu com o nazismo foi aquilo a que os Franceses chamam uma dérapage ‹ quer dizer, uma asneira, um deslize, um descontrolo. Ou talvez fosse o génio que saiu da lâmpada.

A ideia era que se fosse racista até ao limiar da Endlösung, mas sem passar daí. Esse fora sempre, de resto, um jogo muito delicado, e sem dúvida que já houvera derrapagens antes ‹ mas nunca a uma escala tão vasta, nunca num palco tão central do sistema-mundo, e sobretudo nunca de uma forma tão visível. Os soldados das tropas aliadas que em 1945 entraram nos campos de concentração sofreram, efectivamente, um grande abalo pessoal. Mas, no plano colectivo, o mundo pan-europeu ia ter também que enfrentar o problema do génio que fugira da lâmpada. E fê-lo através de um processo que passou pelo banimento do uso público do racismo, e, antes de tudo, do uso público do anti-semitismo. A linguagem destes passou a ser tabu.

Os cientistas sociais entraram no jogo. Nos anos a seguir a 1945, começaram a escrever livro atrás de livro denunciando a significação do conceito de raça [2], quer dizer, a ilegitimidade de se partir do princípio de que as diferenças hoje detectadas em qualquer aferição de determinados grupos sociais possam ser atribuídas a características genéticas inatas. A memória do Holocausto passou a ser matéria dos currículos escolares. Os Alemães, primeiro de uma maneira relutante mas por fim evidenciando alguma coragem moral, esforçaram-se por fazer a análise da sua própria culpa, reduzindo desse modo a vergonha que sentiam. E foi assim que, a seguir a 1989, se viram acompanhados ‹ sem dúvida que de uma forma algo relutante também ‹ pelos restantes países do mundo pan-europeu. Algumas potências aliadas, como a França e a Holanda, começaram também a admitir as suas próprias culpas: culpa por terem deixado que se desse a derrapagem; e culpa porque pelo menos alguns dos respectivos cidadãos participaram activamente no processo. Uma das razões pelas quais a União Europeia reagiu tão fortemente ao fenómeno Haider foi porque a Áustria enquanto país sempre se recusou a assumir a sua parte de culpa, insistindo que foi, antes de tudo, uma vítima. É possível que a maioria dos Austríacos não tivesse desejado o Anschluss, ainda que seja difícil sabê-lo ao certo quando vemos as imagens documentando as multidões a aplaudir nas ruas de Viena. Mas o que é importante aqui reter é que, depois do Anschluss, e a menos que fosse judeu ou cigano, nenhum austríaco tinha outro estatuto que não fosse o de alemão do Terceiro Reich, e a maioria regozijava-se com esse facto.

Esta percepção de que o racismo acabara por sair destroçado ao ir demasiado longe acarretou duas grandes consequências nos países do mundo pan-europeu posterior a 1945. Em primeiro lugar, este países esforçaram-se por acentuar as suas virtudes internas próprias, apresentando-se como nações integradoras e sem mácula de opressão racista, terras de liberdade frente ao “império do mal” que era a União Soviética, cujo racismo, esse sim, se tornou tema comum da propaganda ocidental. Desse esforço decorreu toda a sorte de iniciativas sócio-políticas: a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América, em 1954, de ilegalizar a segregação racial; as políticas filo-israelitas de todo o mundo pan-europeu; e até mesmo a nova ênfase no ecumenismo no interior do mundo cristão ocidental (a par da invenção da ideia de que existia uma coisa chamada herança comum judaico-cristã).

Em segundo lugar, no entanto, e mais importante do que isso, houve a necessidade de restaurar o racismo através de uma versão higienizada que retomasse a sua função original, que era a de manter as pessoas dentro do sistema mas com o estatuto de Untermenschen. Se já não se podia tratar assim os Judeus, nem os Católicos dos países protestantes, havia que ir procurar mais além. Pelo menos nos seus inícios, o período posterior a 1945 foi uma era de incrível expansão económica acompanhada de grandes transformações demográficas conducentes a uma taxa de reprodução radicalmente reduzida do mundo pan-europeu. Este mundo necessitava de mais trabalhadores, e estava a produzir menos trabalhadores do que alguma vez produzira. E assim teve início a era daquilo a que os Alemães eufemisticamente chamaram os Gastarbeiter. Quem eram os Gastarbeiter? Povos mediterrânicos a trabalhar na Europa não-mediterrânica, latino-americanos e asiáticos a trabalhar na América do Norte, gente oriunda das Índias Ocidentais a trabalhar na América do Norte e na Europa Ocidental, gente da África negra e da Ásia meridional a trabalhar na Europa. E ainda, a seguir a 1989, pessoas do antigo bloco socialista vindas para a Europa Ocidental. Todos estes migrantes vieram em grande número porque queriam vir e porque conseguiam encontrar emprego, pois inclusivamente os países pan-europeus careciam desesperadamente deles para poderem prosperar. Mas eles vieram, quase todos, para o fundo da pirâmide ‹ e isso tanto no plano económico como no plano social e político.

Quando, na década de 70, a economia-mundo entrou na sua longa fase B de Kondratieff, e o emprego subiu pela primeira vez desde 1945, os emigrantes tornaram-se um bode-expiatório fácil. As forças da extrema-direita, completamente ilegitimadas e marginais desde 1945, começaram de repente a reemergir, uma vezes a partir de dentro dos grandes partidos conservadores, outras como estruturas autónomas (e nesses casos, apropriando-se da base de apoio não só dos partidos conservadores como também dos próprios partidos de centro-esquerda). Chegados à década de 90, esses partidos começaram a afigurar-se um caso mais sério, pelas razões que já apontei.

Os partidos tradicionais não souberam bem como lidar com este ressurgimento de partidos mais ou menos abertamente racistas. Aterrorizava-os a ideia de que o génio pudesse sair de novo da lâmpada e destroçar a placidez social dos seus Estados. Alguns afirmaram que estas forças de extrema-direita podiam ser contrariadas cooptando-lhes os temas anti-imigrantes através de uma linguagem mais suave. Outros sustentaram que tais forças constituíam um verdadeiro vírus, que devia ser isolado o mais depressa possível. Vós conheceis esta troca de argumentos, porque estais a assistir a ela na Áustria neste momento.

Mais uma vez, os cientistas sociais voltaram a não nos ajudar muito. Procuraram estudar o fenómeno nazi em termos de uma qualquer singularidade da situação histórica da Alemanha, ao invés de verem que todo o sistema-mundo no seu conjunto há muito tempo já que andava a brincar com o fogo, sendo apenas uma questão de tempo até que algures, de algum modo, uma faísca acabasse por atear o incêndio. Os cientistas sociais esforçaram-se ainda por proclamar a sua própria virtude moral (a cujos méritos voltaremos em breve) e por absolver o mundo pan-europeu em função da circunstância de actualmente este fazer uso de uma retórica supostamente não-racista, quando de facto o racismo do mundo pan-europeu posterior a 1945 foi tão vincado e violento quanto o racismo de que esse mesmo mundo dera mostras antes de 1933 ou antes de 1945. O que aconteceu, então, foi apenas que os alvos do ódio e do medo eram, agora, outros. Não andamos nós, hoje, a discutir o chamado “embate de civilizações”, um conceito inventado por um cientista social?

Na verdade, e por mais que eu concorde com ela, a denúncia da Áustria por parte da UE tresanda, em si mesma, a racismo. Pois que diz, exactamente, a União Europeia? Diz que é possível, e porventura até normal, que haja Haiders fora do mundo pan-europeu, e porventura mesmo em países tão próximos como a Hungria e a Eslovénia, mas que eles são inadmissíveis e impensáveis no interior da Europa civilizada. Nós, Europeus, temos que defender a nossa superioridade moral, coisa que a Áustria ameaça tornar impossível. Isso é verdade: a Áustria ameaça, efectivamente, torná-lo impossível, e tem que de algum modo recuar da sua posição actual, que é de todo insustentável. Mas os fundamentos da queixa da UE não se furtam a uma suspeita de mácula moral. E isso porque os valores universalistas da Europa Ocidental encontram-se, eles próprios, profundamente imbuídos do racismo crónico e congénito que é apanágio do mundo pan-europeu.

Para melhor entendermos tudo isto, e para entendermos o falhanço da ciência social em pô-lo a nu, temos que nos deter sobre a história do moderno sistema-mundo depois de 1492.

3. O Sistema-mundo posterior a 1492

Quando aportaram às Américas e reivindicaram a sua conquista, os Europeus depararam com povos indígenas que lhes eram imensamente estranhos. Uns encontravam-se organizados em sistemas relativamente simples, vivendo como caçadores e colectores, enquanto outros se agrupavam em impérios-mundo complexos e sofisticados. Mas tanto num como noutro caso nem as armas destes povos nem as suas imunidades fisiológicas adquiridas (ou a ausência destas, melhor dizendo) lhes permitiram resistir com êxito. Perante isso, os Europeus tiveram que decidir o que fazer com eles. Havia aqueles europeus que, tendo adquirido vastos territórios (em muitos casos, pela primeira vez), desejavam explorá-los de imediato, preparando-se para escravizar os indígenas e aproveitar-se do seu trabalho até aos limites do possível. A justificação que davam para o facto era que os povos indígenas eram bárbaros, não merecendo por isso outro destino que não fosse a mais dura servidão.

Mas havia também evangelistas cristãos, os quais, horrorizados com o tratamento conferido a estes povos indígenas por parte dos Conquistadores europeus, insistiram veementemente não só na possibilidade como na importância de ganhar as almas desses povos com vista à sua redenção. Uma dessas pessoas foi Bartolomeu de las Casas, cuja paixão e militância haveria de culminar, em 1550, numa famosa e clássica discussão acerca da natureza do “outro”. Em 1547, Las Casas tinha já escrito uma breve nota dirigida ao imperador Carlos V (e a todos em geral) relatando com algum pormenor os horrores do que se estava a passar nas Américas, e resumindo toda a situação do seguinte modo:

Se os Cristãos mataram e destruiram tantas almas, foi porque têm um único intuito, que é obter ouro para se encherem de riqueza no mais curto tempo possível, e para se elevarem a altas posições em nada correspondentes aos seus verdadeiros merecimentos. [Š] não têm por [este povo tão humilde, tão paciente e tão fácil de subjugar] nenhum respeito, consideração ou estima. [Š] Não os trataram como se trata animais (prouvera a Deus que os tivessem tratado tão bem e que lhes tivessem mostrado a mesma consideração que usam para com os animais); trataram-nos pior do que a animais, como se fossem menos que excremento ( Las Casas , 1996 [1547]: 52).

Las Casas foi, sem dúvida, o mais ardente cruzado dos direitos dos povos. Foi também ‹ e vale a pena lembrá-lo ‹ o primeiro bispo de Chiapas, hoje terra dos neo-zapatistas, onde é ainda necessário defender a mesma causa que Las Casas defendia há quase 500 anos: os direitos destes povos indígenas a ter a sua dignidade e a sua própria terra. Estes povos acham-se hoje numa situação pouco melhor do que a que tinham no tempo de Las Casas. Há, por esse motivo, quem veja Las Casas e outros teólogos, filósofos e juristas neo-escolásticos espanhóis como precursores de Grócio, considerando-os os “verdadeiros fundadores dos modernos direitos do homem” (Losada, 1976: 22).

Num primeiro momento, o imperador mostrou-se sensível aos argumentos de Las Casas, nomeando-o Protector dos Índios. Mas, posteriormente, repensou o problema e em 1550 convocou para Valladolid uma Junta especial de juízes com o fim de ouvirem uma discussão entre Las Casas e um dos outros conselheiros do imperador, Juan Ginás de Sepúlveda, em torno das questões em presença. Adversário declarado de Las Casas, Sepúlveda apresentou quatro argumentos para justificar o tratamento dos Índios que Las Casas tanto reprovara: os Índios eram bárbaros, pelo que o seu estado natural era de submissão a povos mais civilizados; eram idólatras e praticavam sacrifícios humanos, o que justificava uma intervenção com vista a impedir que fossem cometidos crimes contra o direito natural; justificava-se uma intervenção quando estava em causa salvar vidas inocentes; a intervenção iria facilitar a evangelização cristã. É incrível como estes argumentos nos soam tão contemporâneos. Basta substituir a palavra Cristianismo pela palavra democracia.

Contra estes argumentos, Las Casas expôs os seus: nenhum povo deve alguma vez ser obrigado a submeter-se a outro por razão de uma presumível inferioridade cultural; não se pode punir um povo por crimes cometidos sem que ele tivesse consciência de que eram crimes; só há justificação moral para salvar gente inocente desde que o processo de as salvar não cause dano ainda maior a terceiros; finalmente, não se pode propagar o Cristianismo pela força da espada. E aqui também, mais uma vez, os argumentos parecem-nos incrivelmente contemporâneos.
Para alguns, portanto, Las Casas deve ser visto como o último dos Comuneros, esse primeiro grande movimento de protesto social ‹ aliás ainda muito por estudar ‹ que teve lugar em Espanha no primeiro terço do século XVI e que foi simultaneamente democrático e comunitarista. As implicações daquilo que Las Casas defendia pareciam pôr em causa os próprios alicerces do império espanhol, razão provável pela qual Carlos V retirou o apoio que antes lhe concedera (Castello, 1976). Com efeito, no decurso do debate acerca do conceito de bárbaro, Las Casas insistiu na ideia de que “coisa que não falta são bárbaros para dominar”, recordando assim aos Espanhóis o modo como eles próprios haviam sido tratados pelos Romanos (Mechoulan, 1976: 179). Outros, porém, defendem que Las Casas não passou realmente de um teórico da “boa” colonização, um reformador que “propôs incansavelmente, até ao fim dos seus dias, soluções alternativas para os problemas postos pelo sistema colonial baseado na encomienda” (Milhou, 1976: 166).

O que é verdadeiramente fascinante nesta questão do grande debate travado perante a Junta de Valladolid é que ninguém sabe ao certo qual foi a decisão da Junta. Em certo sentido, esse facto é emblemático do moderno sistema-mundo. Será que alguma vez nós próprios chegámos a decidir? Será que podemos decidir? Terá sido Las Casas ‹ o anti-racista, o defensor dos espezinhados ‹ também a pessoa que tentou institucionalizar uma “boa” colonização? Será que se deve ‹ será que se pode ‹ evangelizar pela força da espada? Nunca nos deram, para estas perguntas, respostas que tivessem consistência lógica ou uma capacidade de persuasão política suficiente para pôr um ponto final em toda a discussão. Talvez essas respostas não existam.
De Las Casas para cá, construímos uma economia-mundo capitalista que se foi estendendo à totalidade do globo e que sempre justificou as suas hierarquias na base do racismo. É certo que também contou sempre com a sua quota-parte de pessoas que procuraram aliviar os piores traços desse racismo, e que essas pessoas, devemos admiti-lo, conseguiram um êxito parcial. Mas também é verdade que houve sempre massacres brutais, exemplos de Endlösung anteriores à Endlösung, ainda que porventura planeados de uma maneira menos burocrática, menos sistemática e menos eficaz, e, sem dúvida, com menos visibilidade pública.

Ah ‹ dir-me-eis vós ‹, mas depois veio a Revolução Francesa e a Déclaration des Droits de l¹Homme . Pois!, mas sim e não. É certo que a Revolução Francesa veio encarnar um protesto contra as hierarquias, os privilégios e a opressão, fazendo-o com base num universalismo igualitário. O gesto simbólico que exteriorizou esse protesto foi a rejeição da forma “Monsieur” no modo de tratamento e a sua substituição pela palavra “Citoyen”. Mas aí é que está o busílis. Porque o conceito de cidadão tinha por finalidade incluir. Esperava-se que todos os cidadãos, e não apenas um grupo restrito de aristocratas, tivessem uma palavra a dizer sobre o seu governo. O busílis está em que, se se vai incluir toda a gente de um dado grupo, primeiro alguém tem que decidir quem são os membros desse grupo. E isso implica, necessariamente, que haja pessoas que são não-membros.

Como é inevitável, o conceito de cidadão exclui tanto quanto inclui. E de facto, no decurso dos dois séculos a seguir à Revolução Francesa o impulso no sentido da exclusão da cidadania foi tão importante quanto o impulso no sentido da inclusão. Quando, em 1883, Karl Lueger ‹ de resto um nome bem conhecido em Viena ‹ afirmou “Somos homens, austríacos cristãos” (Andics , 1983: 271), ele estava a propor uma definição dos limites da cidadania, definição que os eleitores vienenses pareceram apreciar, embora o mesmo não acontecesse com o imperador. Lueger não estava disposto a incluir os judeo-magiares [3], que, aos seus olhos, tinham tanto de estrangeiro quanto os capitalistas estrangeiros que atacava. Seria isso um proto-fascismo, como muitos defendem, ou apenas um “extremismo calculado”, como insiste John Boyer (Boyer, 1981: xii)? Hoje em dia, há quem coloque esta mesma questão a propósito de Jörg Haider. Mas que diferença faz sabermos a resposta, se o resultado político é praticamente idêntico?

Na mesma altura da história moderna em que a Revolução Francesa nos legava a todos esse campo minado que é o conceito de cidadão, o mundo do saber vivia momentos de grande turbulência. Essa turbulência seguiu-se à secularização do saber conseguida através da separação da filosofia relativamente à teologia, culminando um processo que se prolongara por vários séculos. Agora, no entanto, a questão que se colocava não se limitava à secularização do saber. Por volta da segunda metade do século XVIII, as palavras ciência e filosofia ‹ duas palavras que, se até então não eram sinónimos, pelo menos configuravam uma forte sobreposição ‹ passaram a ser definidas como sendo ontologicamente opostas. As duas culturas, essa característica singular das estruturas do saber do moderno sistema-mundo, tinham-se, assim, imposto como clivagem definidora do conhecimento. E com esta clivagem surgiu também a divisão intelectual e institucional entre, por um lado, a busca da verdade (domínio da ciência) e, por outro, a busca do bem e do belo (domínio da filosofia ou das humanidades ‹ Geisteswissenschaften). É esta ruptura fundamental que explica os contornos do desenvolvimento subsequente das ciências sociais, bem como, em minha opinião, a incapacidade destas para dar conta desse racismo que é parte integrante da economia-mundo capitalista. É sobre essa história que me vou, de seguida, deter.

Os dois maiores legados da Revolução Francesa foram a ideia de que a mudança política era algo de normal, e a ideia de que a soberania não residia no governante nem num grupo de notáveis, mas sim no povo (Wallerstein , 1991). Este, por sua vez, não era mais do que a expressão da lógica inerente ao conceito de cidadão. Ambas as ideias eram extremamente radicais nas suas respectivas implicações, e nem a queda do regime jacobino nem mesmo o fim do regime napoleónico que lhe sucedeu impediram que elas viessem a impregnar todo o sistema-mundo e se tornassem amplamente aceites. Quem estava em posições de poder viu-se forçado a lidar com esta nova realidade geocultural. Se a mudança política era algo que devia ser considerado normal, então era importante saber como o sistema funcionava, a fim de melhor controlar o processo. Esta circunstância produziu o impulso decisivo no sentido da emergência institucional da ciência social, esse ramo do saber que se propõe explicar o agir social, a mudança social e as estruturas sociais.

Não é este o lugar próprio para analisar a história institucional das ciências sociais. Essa tarefa encontra-se sucintamente feita no relatório da comissão internacional que eu próprio encabecei, denominado Para abrir as Ciências Sociais (Wallerstein et al., 1996). Há apenas dois aspectos que aqui desejo, agora, trazer à discussão: o lugar da ciência social dentro das duas culturas, e o papel por ela desempenhado na compreensão do racismo.

As duas culturas arrumaram os domínios do saber segundo linhas e divisões que hoje nos parecem óbvias, muito embora não o fossem para ninguém até ao século XVII, inclusivamente. As ciências exactas apropriaram-se do domínio do mundo natural, fazendo dele seu reino exclusivo. E as humanidades apropriaram-se do mundo das ideias, da produção cultural, e da especulação intelectual, dele fazendo igualmente o seu reino exclusivo. Mas quando confrontadas com o mundo das realidades sociais, ambas as culturas disputaram esse domínio, cada uma delas argumentando que esse era um reino que efectivamente lhe pertencia. O que aconteceu então, quando as ciências sociais se começaram a institucionalizar no âmbito do sistema universitário que o século XIX viu renascer, foi o seu dilaceramento em resultado desta discussão epistemológica, deste Methodenstreit. As ciências sociais iriam, assim, emergir em campos separados, com algumas das agoras chamadas disciplinas a tender fortemente, pelo menos de início, para o campo idiográfico e humanista (história, antropologia, estudos orientalistas), e outras a tender para o campo nomotético e cientificista (economia, sociologia, ciência política). A implicação que isto tem para o problema que aqui nos ocupa é que as ciências sociais se encontravam profundamente divididas quanto à questão de saber se se deveriam preocupar apenas com a busca da verdade ou se também as deveria preocupar a busca do bem. Essa é uma questão que as ciências sociais nunca chegaram a resolver.

Quanto ao racismo, o que é mais espantoso no que toca ao conhecimento do social ao longo de todo o século XIX e até 1945 é que a ciência social nunca tratou de frente esta questão. E quanto a enfrentá-la indirectamente, o seu currículo é deplorável. Comecemos por abordar a história, a única ciência social moderna que já existia como nome e como conceito muito antes do século XIX. Nesse século, ela sofreu aquilo que foi chamado uma revolução científica, a qual teve em Leopold von Ranke a sua figura central. Todos vós sabereis que Ranke insistiu na ideia de que os historiadores devem escrever a história wie es eigentlich gewesen ist. Quer isso dizer que se deve reconstruir o passado, antes de mais, a partir dos materiais coevos do passado a estudar. Que o mesmo é dizer que há que recorrer aos arquivos, depositários de documentos escritos do passado, documentos esses, por sua vez, a tomar como fontes que haverá que analisar criticamente.

Não me irei aqui deter sobre as posteriores críticas dirigidas a esta abordagem, segundo as quais ela nos circunscreve inevitavelmente ao estudo quase só da história política e diplomática, já que se serve sobretudo dos escritos de pessoas ligadas aos Estados e aos seus governantes. Não me irei deter também sobre o facto de a ênfase posta nos arquivos enquanto fonte crucial para a obtenção de dados ter obrigado a história a voltar-se exclusivamente para o passado, cujas balizas temporais seriam, assim, definidas pelo grau de acesso aos arquivos permitido pelos Estados aos estudiosos interessados. Permita-se-me que insista num único aspecto da história, pelo menos tal como ela foi praticada até 1945. É que história era, apenas e só, a história das chamadas nações históricas. E, de resto, não podia deixar de ser assim, dados os métodos utilizados.

No Império Austro-Húngaro ‹ como aliás sucedeu em toda a parte ‹, o conceito de nação histórica não era apenas um conceito académico, mas antes uma verdadeira arma política. É por de mais evidente quem ou o que são as nações históricas. São elas as nações localizadas nos poderosos Estados modernos, capazes de financiar os seus historiadores e de levá-los a que escrevam sobre eles. Ainda na década de 60, H. R. Trevor-Roper fazia a inacreditável afirmação segundo a qual a África não tem história. Mas poderíamos igualmente perguntar quantos cursos é que eram oferecidos na Universidade de Viena, no século XIX, sobre a história da Eslovénia. Ou até mesmo quantos são oferecidos actualmente. A própria expressão “nações históricas” vem introduzir uma categoria racista no próprio cerne da prática histórica. Por conseguinte, se considerarmos a produção historiográfica mundial anterior a 1945, não é por acaso que (pelo menos) 95% dela se resume à história de cinco nações/espaços históricos: a Grã Bretanha, a França, os Estados Unidos da América, as Alemanhas (é deliberadamente que uso esta formulação), e as Itálias. Quanto aos restantes 5%, constituem, em grande parte, a história de uns tantos Estados europeus de menor poderio, como sejam a Holanda, a Suécia ou a Espanha. Devo acrescentar que também houve uma escassa percentagem produzida acerca da Idade Média europeia, assim como acerca das presumíveis fontes da Europa moderna: a Grécia e a Roma antigas. Mas já não acerca da antiga Pérsia, ou do antigo Egipto. Os historiadores que construiram a história das Alemanhas deram algum contributo para o esclarecimento do debate público que Karl Lueger e outros suscitaram na Viena do século XIX? Creio bem que não.
Mas será que as outras ciências sociais andaram melhor? Os economistas andavam ocupados a construir teorias universais acerca do homo economicus. Adam Smith disse-nos, na célebre fórmula do seu livro A Riqueza das Nações , que todo o ser humano procura “mercar, trocar, e negociar”. A finalidade única dessa obra consistiu em convencer-nos (e ao governo britânico) que todos se deveriam abster de interferir nesta tendência natural e comum a todo o indivíduo. David Ricardo, ao criar a sua teoria do comércio internacional baseada no conceito de vantagem comparativa, serviu-se ‹ numa alusão igualmente famosa ‹ de um exemplo supostamente ilustrativo em que entravam os nomes da Inglaterra e Portugal. Ricardo não nos disse que o exemplo era factual, nem nos explicou em que medida esta chamada vantagem comparativa fora algo efectivamente imposto pelo poderio britânico a um Estado mais fraco, o Estado português (Sideri , 1970).

É verdade, sim, que alguns economistas ingleses insistiram em dizer que os processos da história recente da Inglaterra não constituíam uma ilustração de leis universais. E Gustav von Schmoller dirigiu todo um movimento ‹ chamado das Staatswissenschaften ‹ com o intuito de historicizar a análise económica (Strohmayer, 1997). Foi um economista vienense, Karl Menger, quem comandou contra esta heresia o ataque que finalmente a deitou por terra, não obstante ela ter antes desfrutado de uma posição firme no sistema universitário prussiano. Mas uma crítica da economia clássica ainda mais incisiva do que a de Schmoller seria a que Karl Polanyi produziu no seu livro The Great Transformation , escrito na Inglaterra após o autor ter abandonado Viena em 1936. Mas os economistas não lêm Polanyi. Os economistas têm tendência, tanto quanto isso lhes é possível, para evitar lidar com a economia política, e a principal tentativa de lidar com o racismo por parte de um economista convencional passou por entendê-lo em termos de uma opção de mercado (Becker, 1971).

O desprezo que os economistas convencionais demonstram em relação à análise de qualquer situação que saia dos parâmetros do ceteris paribus é uma maneira de assegurar que todo o comportamento económico que não siga as normas do mercado tal como os economistas as entendem não é digno de ser analisado e muito menos de ser tomado seriamente em consideração enquanto comportamento económico eventualmente alternativo. A falsa inocência política decorrente de tais pre-conceitos torna impossível analisar tanto as origens como as consequências económicas dos movimentos racistas. De facto, ela varre a questão para fora do horizonte da análise científica. E, pior ainda, sugere que muito do comportamento político passível de ser analisado como sendo racista ou como resistência ao racismo é um comportamento irracional do ponto de vista económico.

Quanto aos estudiosos da ciência política, também não nos têm valido de muito. A circunstância de desde o início se haverem centrado em assuntos constitucionais, por sua vez resultante das suas ligações históricas às faculdades de Direito, levou a que a análise do racismo se transformasse numa questão de legislação formal. A África do Sul do Apartheid era racista porque abrigava discriminações formais no interior do sistema jurídico. A França não era racista porque não tinha uma discriminação jurídica desse tipo, pelo menos na metrópole. Para além da análise dos textos constitucionais, a ciência política anterior a 1945 desenvolveu também aquilo que apelidou de estudo comparado dos governos. Mas que governos é que esses estudos comparavam? Os dos nossos velhos conhecidos, os cinco maiores países pan-europeus: a Grã Bretanha, a França, os Estados Unidos da América, a Alemanha, e a Itália. Mais nenhum era digno de ser estudado, porque mais nenhum era verdadeiramente civilizado ‹ nem sequer, receio bem, esse bicho estranho que foi o Império Austro-Húngaro.

Mas então, pelo menos os sociólogos, que gozam da reputação de serem o viveiro do radicalismo político no sistema universitário, esses ao menos portaram-se melhor que os demais? Longe disso! Foram os piores de todos. Anteriormente a 1945, havia duas espécies de sociólogos. Havia aqueles, especialmente nos Estados Unidos da América, que justificavam explicitamente o conceito de superioridade branca. E havia aqueles que, oriundos das áreas do trabalho social ou da militância religiosa, procuravam descrever os mais desfavorecidos dos grandes centros urbanos e explicar os “desvios” dos seus habitantes. As descrições eram bem intencionadas, ainda que paternalistas, mas o pressuposto de que o comportamento observado era desviante e de que tinha que ser corrigido por forma a conformar-se com as normas da classe-média não era posto em causa. Além disso, dado que as classes inferiores eram também, na maior parte dos casos ‹ e não só nos Estados Unidos da América ‹, etnicamente distintas das classes-médias, os fundamentos racistas deste grupo ressaltam com clareza, ainda que os seus membros o não reconhecessem.

Mas o pior de tudo é que as nossas quatro disciplinas basilares ‹ a história, a economia, a ciência política, e a sociologia ‹ limitavam-se a analisar o mundo pan-europeu, considerado como o mundo da modernidade e da civilização. Os universalismos que apregoavam tinham por pressuposto as hierarquias do moderno sistema-mundo. Quanto à análise do mundo extra-europeu, ela era confiada a disciplinas diversas: a antropologia para os bárbaros “povos sem história”, e os estudos orientalistas para as “civilizações superiores”, quer dizer, para aquelas civilizações não ocidentais que, apesar de superiores, se mostravam incapazes de avançar para a modernidade sem uma intervenção europeia ao nível da reorganização da sua dinâmica social. A etnografia, por seu turno, rejeitava concreta e abertamente a historicidade das suas “tribos”, as quais eram vistas como algo de imutável, pelo menos até ao momento do “contacto cultural”. E os estudos orientalistas encaravam as histórias dessas civilizações superiores como algo de fixo, “congelado” no tempo.

O mundo extra-europeu representava a “tradição”; o mundo pan-europeu representava a modernidade, a evolução e o progresso. Era o Ocidente em oposição ao resto. Note-se que, ao analisar o mundo moderno, e para descrever as regularidades do presente, a ciência social inventou, não uma, mas sim três disciplinas: a economia, a ciência política, e a sociologia. Mas, ao analisar o mundo extra-europeu, não só não era necessária a história como não havia necessidade de recorrer à trindade de abordagens exigida para falar do mundo pan-europeu. Isso acontecia porque se considerava que a “diferenciação” em diversas áreas da acção social ‹ o mercado, o Estado, e a sociedade civil ‹ constituía uma conquista da modernidade, e até mesmo a essência desta. Dada a disjunção da ciência e da filosofia, não havia quem recordasse aos praticantes que isto era tão somente uma pressuposição da ideologia liberal e não uma explicação plausível da realidade social. Não admira, por isso, que a ciência social não nos tivesse ajudado a entender o nazismo. E a evolução que sofreu a seguir a 1945, embora tivesse corrigido um pouco a trajectória, não nos tem ajudado muito no esforço de compreender Haider. Sobretudo, não se encontra explicação para o fenómeno da resistência a não ser como mais uma actividade desviante em relação à qual poderemos talvez sentir simpatia, mas uma simpatia eivada de um ligeiro paternalismo.

Os cientistas sociais andaram tão ocupados a travar as batalhas do nascimento do moderno sistema-mundo que não puderam travar as batalhas do próprio funcionamento do sistema-mundo. A busca de neutralidade por parte do investigador era a luta contra a Igreja ‹ e, por extensão, contra os Estados ‹, que lhe tentavam impor os seus desígnios. Quando Weber falou do desencanto do mundo, a própria linguagem que utilizou era uma linguagem teológica, não obstante a sua invectiva ser dirigida contra o nacionalismo prussiano. Só no seguimento da terrível destruição dos valores burgueses causada pela Primeira Guerra Mundial, e concretamente no seu famoso discurso aos estudantes da Universidade de Munique, intitulado “A Ciência como Vocação”, é que Weber se irá começar de novo a lembrar de que a ciência social não pode ser isolada dos modos como o mundo é, sempre, um lugar encantado:

Não é a bonança do Verão que temos perante nós, mas, antes de mais, uma noite polar de gélida escuridão e inclemência, seja qual for o grupo que agora aparente vencer. Pois onde nada há, aí não foi só o imperador que perdeu os seus direitos, mas também o proletário. Quando esta noite se for desvanecendo devagar, quem estará ainda vivo de entre aqueles para quem a Primavera agora aparentemente floresceu com tanta exuberância? (Weber, 1992: 251)

4. O Sistema-mundo posterior a 2000

A forte votação no FPÖ e a reacção enérgica da União Europeia são prenunciadoras da actual crise, embora já tivesse havido outros sinais de aviso. Passámos de um generalizado optimismo em relação ao futuro ‹ e da certeza de que as coisas iam melhorar ‹ para um medo generalizado de que as coisas se não venham a passar exactamente assim, e esse medo chegou à parte mais abastada do mundo. Também na Áustria, também na Europa Ocidental, também nos Estados Unidos da América, vemos que a fé no reformismo racional e centrista, avançando paulatinamente mas sempre na mesma direcção, deu lugar a um cepticismo quanto a todas as promessas das forças políticas dominantes, quer se intitulem de centro-esquerda ou de centro-direita. O consenso centrista enformado pela ideologia liberal oitocentista já não colhe. Foi radicalmente posto em causa em 1968 e enterrado em 1989.

Entrámos num longo período de transformações caóticas do sistema-mundo de que fazemos parte. O resultado dessas transformações é, ainda, intrinsecamente imprevisível. Por outro lado, no entanto, podemos influenciar o sentido desse resultado. É essa a mensagem das ciências da complexidade (Prigogine, 1996). É essa a mensagem que a ciência social devia, hoje, trasmitir [4]. É esse o contexto em que devemos situar Jörg Haider e o fenómeno da resistência.
Num sistema-mundo que está a desabar porque se esgotaram as suas possibilidades estruturais de adequação, aqueles que detêm poder e privilégios não irão simplesmente pôr-se à margem sem nada fazer. Pelo contrário, irão organizar-se com vista a substituir o actual sistema-mundo por outro igualmente hierárquico e desigual, ainda que baseado em princípios diferentes. Para esses, Jörg Haider é um demagogo e um perigo. O entendimento que ele tem da realidade contemporânea é de tal maneira deficiente que não se dá sequer conta de que, para os Austríacos conseguirem manter o actual nível de vida, teriam de duplicar, triplicar ou mesmo quadruplicar o número de imigrantes entrados anualmente no país durante os próximos 25 a 50 anos, e isso somente para manter a força de trabalho a níveis capazes de assegurar as pensões de uma população austríaca cada vez mais envelhecida [5]. Existe o perigo claro de que a demagogia conduza aceleradamente o mundo pan-europeu para uma via de guerras civis destrutivas. A Bósnia e o Ruanda espreitam no horizonte. Os dirigentes da União Europeia entendem isso. O presidente Klestil também. Só a direcção do ÖVP é que parece que não.

Entretanto, forma-se a resistência, o Widerstand. Nela estão representadas forças de sentido transformador relativamente a esta crise estrutural da economia-mundo capitalista ‹ forças que são diferentes do FPÖ, mas que também diferem da direcção da UE. Mas será que elas têm uma percepção clara daquilo que querem? Talvez só de uma maneira muito difusa. É aqui que a ciência social pode desempenhar um papel. Mas tem que ser uma ciência social que se recuse a separar a busca da verdade da busca do bem; uma ciência social que seja capaz de superar a fractura das duas culturas; uma ciência social que seja capaz de incorporar plenamente a permanência da incerteza, comprazendo-se com as possibilidades que essa incerteza lhe abre em termos de criatividade e de uma nova racionalidade material (a materielle Rationalität de Max Weber).

Com efeito, precisamos desesperadamente de explorar possibilidades alternativas com vista a um sistema histórico mais materialmente racional, para substituir o sistema louco e moribundo em que vivemos. Precisamos desesperadamente de pôr a descoberto as raízes profundas dos privilégios racistas de que o nosso sistema-mundo está impregnado, e que abrangem não só todas as suas instituições como também as estruturas do saber e as próprias forças da resistência. Vivemos um tempo de mudança veloz. Será isso negativo? Nas décadas que se avizinham vamos encontrar muita desordem e muitas mudanças. E sabemos que sim, que Viena há-de mudar. Mas sempre houve um grau maior de mudança do que aquela de que nos recordamos, e a mudança foi mais veloz do que imaginamos. A ciência social também nos deixou desamparados quando precisámos dela para entender o passado, oferecendo-nos uma falsa imagem de um mundo tradicional em que a mudança se processava com toda a lentidão. A verdade é que tal mundo nunca existiu de facto, como não existe hoje em dia, nem na Áustria nem onde quer que seja. Por entre a incerteza imensa quanto ao lugar para onde vamos, temos que nos esforçar por descobrir nos nossos passados, ao mesmo tempo que os vamos inventando, aquilo que para nós é bom e belo, e então projectar essa visão nos nossos futuros. Precisamos de criar um mundo mais habitável e vivível. Temos que usar a nossa imaginação. E pode ser que assim consigamos começar a erradicar os racismos profundos que moram em nós.

Em 1968, durante a revolta dos estudantes em França, o dirigente estudantil Daniel Cohn-Bendit, ‹ Dany le Rouge ‹ cometeu o erro táctico de ir brevemente de visita à Alemanha. Por ser cidadão alemão e não francês, o governo do general de Gaulle podia impedi-lo de regressar a França, o que fez. Em consequência disso, os estudantes desfilaram por Paris gritando a palavra de ordem “Somos todos judeus alemães; somos todos árabes palestinianos”. Foi uma boa palavra de ordem, que de resto todos poderíamos adoptar. Mas também podíamos acrescentar, com alguma humildade: “Somos todos Jörg Haider”. Se queremos combater os Jörg Haiders deste mundo ‹ e devemos querer fazê-lo ‹, temos que primeiro olhar para dentro de nós próprios. Eis um pequeno mas eloquente exemplo. Quando o novo governo austríaco se formou, o governo israelita mandou chamar o seu embaixador, num gesto de protesto que é de aplaudir. Porém, passado apenas um mês, o Knesset israelita colocou o primeiro-ministro Barak em dificuldades ao aprovar uma moção no sentido de fazer com que qualquer referendo relativo à retirada dos montes Golan precisasse de uma “maioria especial”, o que não é mais do que linguagem codificada para dizer que com isso se esvaziavam, na prática, os direitos de cidadania dos cidadãos árabes de Israel relativamente a essa questão. Acresce que um dos principais proponentes da moção foi Natan Sharansky e o seu partido de emigrados russos, ou seja, o mesmo Natan Sharansky que na União Soviética fora um famoso dissidente em protesto contra o anti-semitismo ali praticado de facto pelas políticas governamentais. A luta contra o racismo é indivisível. Não pode haver regras diferentes para a Áustria, para Israel, para a U.R.S.S., ou para os Estados Unidos da América.

Permita-se-me que conte mais um episódio curioso. Na disputa presidencial actualmente em curso nos Estados Unidos da América, houve na Carolina do Sul uma eleição primária do Partido Republicano que foi crucial. Durante a corrida para as primárias, George W. Bush tentou garantir um apoio forte por parte da chamada direita cristã, deslocando-se para isso à Bob Jones University, bastião destas forças de direita, para aí usar da palavra. O problema é que a Bob Jones University é conhecida por duas coisas: por chamar anti-Cristo ao Papa (sendo que a Universidade é uma instituição protestante fundamentalista), e pelo facto de ter proibido os seus estudantes de namorarem pessoas de outras raças. A questão acabou por assumir proporções políticas importantes e por se tornar embaraçosa para George W. Bush, que mais tarde afirmaria lamentar não se ter pronunciado contra essas duas posições (a atitude ferozmente anticatólica, e a proibição de relações inter-raciais) aquando da sua visita à universidade.

O significado do incidente não tem tanto a ver com o embaraço de Bush, que no entanto nos diz muito sobre os tabus instalados depois de 1945. O que é interessante salientar é a reacção de Bob Jones III, presidente da universidade, à luz da controvérsia pública que se seguiu ao incidente. Bob Jones III apareceu no programa de Larry King, na CNN. A primeira pergunta que Larry King lhe colocou foi por que razão a universidade proibia o namoro inter-racial. A resposta foi que somos contra a filosofia do “um mundo único”, sem quaisquer diferenças. Larry King referiu que isso estava muito longe de traduzir uma oposição a um mundo único ou uma oposição ao relacionamento de dois jovens. Bob Jones ainda objectou com outras razões, mas finalmente insistiu que nem ele nem a universidade eram racistas (o grande tabu), e que nesse mesmo dia a escola havia abolido a norma em causa, por ser secundária e não fundamental para o objectivo de promover o cristianismo. Quer-me parecer que isto revela que os protestos públicos têm a faculdade de forçar alguns racistas a recuar em público, pelo menos como manobra táctica. Neste aspecto, o episódio pode constituir uma lição para as forças conservadoras confrontadas com o pesadelo de uma ofensiva da extrema-direita dirigida contra elas. Mas, independentemente da questão do desvio táctico, o que é importante salientar é que o racismo perdura.

O albatroz continua pendurado em volta dos nossos pescoços. É um demónio que nos atormenta. A resistência é uma obrigação moral. Ela não pode, contudo, ser empreendida de uma maneira inteligente e útil se não for acompanhada de um trabalho de análise, cabendo às ciências sociais a função moral e intelectual de ajudar a fornecer essa análise. Mas tal como nos irá ser muito doloroso extirpar o racismo que existe dentro de cada um de nós, será igualmente doloroso para os cientistas sociais quando tiverem que des-pensar a ciência social que nos estropiou e que criar em seu lugar um tipo de ciência social mais útil. E regresso então ao meu título inicial, “A Ciência Social num Tempo de Transição”. Num tempo como este, todos nós podemos ter um impacto tremendo sobre o que acontece. Em momentos de bifurcação cultural, as flutuações tendem a ser amplas e descontroladas e os pequenos gestos podem ter consequências consideráveis, em contraste com os períodos mais normais e estáveis, em que os grandes gestos desencadeiam, quando muito, consequências modestas. Isso abre-nos oportunidades mas é também gerador de uma pressão moral. Se, ao cabo do período de transição, o mundo não estiver manifestamente melhor do que está hoje ‹ e bem pode suceder que não esteja ‹, só nos poderemos culpar a nós mesmos. Este “nós” são os membros que compõem a resistência. Este “nós” são os cientistas sociais. Este “nós” são todas as pessoas comuns e boas.

 

[1] Conferência proferida na Universidade de Viena em 9 de Março de 2000, no âmbito da série “Von der Notwendigkeit des Überflüssigen ‹ Sozialwissenschaften und Gesellschaft” (“Da Necessidade do Supérfluo ‹ Ciências Sociais e Sociedade”).

[2] A UNESCO patrocinou uma série de livros deste tipo.

[3] Outros alvos dos ataques de Lueger foram os Judensozi, o Judeoliberalismus e os Judenfreimaurer (designações pejorativas visando estigmatizar socialistas, liberais e pedreiros-livres como judeus).

[4] Eu próprio procurei fazê-lo em dois trabalhos recentes. V. Wallerstein, 1998, e Hopkins e Wallerstein, 1996.

[5] V. o relatório previsto para sair em Março de 2000 por iniciativa da Divisão de População das Nações Unidas e intitulado ŒReplacement Migration: Is It a Solution to Declining and Ageing Populations?¹ A Áustria propriamente dita não é discutida no âmbito deste relatório. A propósito da Alemanha, no entanto, ele refere que, só para manter constante e a valores de 1995 o volume da respectiva população em idade activa, este país teria de aceitar receber 500.000 migrantes por ano daqui até 2050.

Published 13 September 2000
Original in English
Translated by João Paulo Moreira
First published by Ord&Bild

Contributed by Revista Crítica de Ciências Sociais © Immanuel Wallerstein / Revista Crítica de Ciências Sociais / Eurozine

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