Para um internacionalismo pós-vestefaliano
Qual é o lugar do internacionalismo solidário no complexo de relações sociais configuradas pela compressão espacio-temporal que a globalização supõe? E quais são os seus conteúdos? 150 anos depois do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, que insuficiências e desajustamentos revela o património internacionalista por ele simbolizado?
Comecemos por registar os paralelos e as simetrias entre esse tempo e o tempo presente. Em 1840-50, celebrava-se publicamente o capitalismo industrial num mundo eurocêntrico marcado pela sucessão de revoluções burguesas liberais; 150 anos depois entroniza-se política e intelectualmente o capitalismo global e informacional num mundo americanocêntrico marcado pela canonização dos modelos políticos e económicos únicos. Em 1840-50, o cosmopolitismo burguês e liberal tinha a sua contra-face no internacionalismo solidário dos trabalhadores; 150 anos depois, a globalização predatória (Falk, 1999) ocorre simultanemente com a emergência de movimentos sociais transnacionais que são expressões parcelares de uma experimentação contra-hegemónica da globalização.
A hipótese que procurarei testar neste capítulo é precisamente a de que esse património internacionalista viu diluída a sua virtualidade emancipatória na dinâmica de afirmação dos capitalismos nacionais como unidades básicas da economia-mundo capitalista. Essa diluição foi um dos rostos do processo mais vasto de subalternização do princípio da comunidade em relação aos princípios do mercado e do estado na consolidação do sistema mundial moderno. Esvaziado desta lógica comunitária, o sistema mundial moderno veio a assentar apenas em dois pilares: a economia-mundo e o sistema interestatal, como recorda Boaventura de Sousa Santos1.
O internacionalismo solidário, atravessado na sua génese por uma tensão insanável entre uma lógica de ruptura e uma lógica de adaptação relativamente à conformação política e económica do sistema mundial no século XIX, sofreu gradualmente um processo de clarificação interno que acabou por identificá-lo como um prolongamento da modernidade vestefaliana, isto é, de um sistema que, segundo Richard Falk, “era baseado na negação da totalidade e atribuía primazia às partes, concebidas como unidades auto-reguladas e económica e politicamente soberanas que defendiam fronteiras territoriais amplamente reconhecidas” (1999: 52). Neste sentido, a lógica da segmentação territorial de que a divisão intelectual do trabalho entre a Sociologia e as Relações Internacionais (Linklater, 1998: 162) é apenas um epi-fenómeno tornou-se a lógica hegemónica e bloqueou a radicalidade de uma alternativa internacionalista ao desenvolvimento capitalista, forjada no século XIX.
Em tempo de globalização predatória, a revisitação do internacionalismo solidário pressupõe, desde logo, a plena consciência da realidade e dos fundamentos desse bloqueamento. Até porque, embora em termos substancialmente diferentes dos verificados na fase do capitalismo organizado, a combinação entre Estado e mercado continua a ser o eixo central da regulação social no tempo do capitalismo global. E, por isso, tanto então como agora, a revisitação do internacionalismo solidário como discurso e prática contra-hegemónicas é uma forma de interrogar o peso do princípio da comunidade por contraposição àqueles dois. As perguntas cruciais a que este capítulo procurará responder são, pois, as seguintes: em primeiro lugar, como se processou a assimilação da alternativa internacionalista pelo sistema mundial moderno? Em segundo lugar, por onde passa a concretização do princípio da comunidade no tempo do capitalismo global?
1. Raízes e trajectória de um bloqueamento
A construção nacional das identidades e da sua regulação foi, desde o início, o cerne da representação vestefaliana do mundo, enquanto componente ideológica central do sistema mundial moderno. O princípio da territorialidade constituiu, por isso, a chave de leitura originária dessa representação. Mas foi já na fase do capitalismo organizado, nos países centrais, que a territorialidade e a construção nacional aniquilaram o internacionalismo solidário como fórmula alternativa. Para tanto convergiram a clarificação interna do leque de princípios regulatórios do sistema mundial (definitivamente o estado e o mercado) com a sua entronização teórica garantida pelo senso comum realista.
1.1- Internacionalismo, Estado e mercado
Um dos clássicos da teoria das relações internacionais, E. H. Carr (1946) diagnosticou no processo de edificação do modelo de Estado Providência nos países centrais do sistema mundial, entre 1919 e 1939 (a ), o apogeu da fusão da territorialidade, com a soberania, a cidadania e a nacionalidade. Para Carr, o compromisso entre capital e trabalho subjacente à conquista dos direitos económicos e sociais foi de par com uma crescente nacionalização das políticas económicas, entendida como condição da protecção dos níveis de remuneração salarial e do pleno emprego; e, nesse quadro, as organizações de trabalhadores, fortalecidas pelo seu novo peso negocial e pela extensão do sufrágio masculino, passaram a privilegiar uma acção proteccionista dos seus membros contra as ameaças do mercado internacional e contra a concorrência da força de trabalho migrante. Haverá, portanto, segundo Carr, uma relação directa entre um modelo social fundado no alargamento dos direitos de cidadania à esfera económica e social e a fragilização das concepções cosmopolitas, para as quais a noção de comunidade moral é mais ampla do que a de Estado-nação.
O que Carr localiza no processo de afirmação do é afinal um aprofundamento do que Adam Smith e Ricardo haviam retratado como incontestadas realidades de base do argumento das vantagens comparativas: comunidades nacionais, dotadas de trabalho nacional e de capital nacional, os quais se combinam (ainda que conflitualmente) para a produção de bens nacionais, com recurso fundamentalmente a recursos naturais nacionais e tendo como horizonte a competição desses bens nacionais nos mercados internacionais (Daly, 1999).
Ora, provadamente, esta internacionalização não conduziu ao internacionalismo (Waterman, 1998: 48) e não foi, por isso, contrabalançada por ele. Ao contrário do que leituras descontextualizadas da Ideologia Alemã e do Manifesto do Partido Comunista poderiam fazer supor, a internacionalização do capital fez-se de compartimentação acrescida do trabalho e, por arrastamento, de compartimentação da solidariedade. Por outras palavras, a conjugação entre alargamento da cidadania e fechamento da comunidade cidadã foi completamente ao invés do que a promessa marxista do internacionalismo proletário fizera crer. Enquanto o capital reforçou a sua natureza desterritorializada, o trabalho acentuou a sua vinculação territorial.
A fundamentação teórica do internacionalismo proletário assentava em três pressupostos (Hyman, 1999). Primeiro, o de que a emancipação da humanidade encontraria no proletariado o seu intérprete privilegiado. A opressão de que era vítima no quadro da sociedade burguesa impunha à classe operária a sua completa perda de humanidade, pelo que a sua emancipação supunha a emancipação total da humanidade. Daí a famosa verdade de fé: “os proletários não têm nada a perder senão as suas cadeias.” Segundo, a crença em que o avanço do capitalismo propiciaria o fim das diferenciações funcionais pré-capitalistas e a homogeneização do proletariado. Em terceiro lugar, a comunidade de interesses decorrente desta homogeneização daria um sentido redentor ao internacionalismo proletário; como forma superior de internacionalismo anti-capitalista, o internacionalismo proletário era entendido como negação radical de todos os nacionalismos e como uma antecipação profética da comunidade socialista que substituiria as rivalidades entre os Estados-nação por formas harmoniosas de cooperação.
Este carácter utópico da promessa do internacionalsmo proletário ajusta-se, deve sublinhar-se, à efectiva identidade internacionalista da solidariedade operária que foi experimentada no quadro do capitalismo do século XIX. Um tempo em que os dirigentes sindicais emigram da Inglaterra para os Estados Unidos, a Holanda ou a Austrália como parte integrante do seu trabalho militante; um tempo em que uma teórica como Rosa Luxemburgo aparece ligada às lutas sociais na Polónia, na Rússia e na Alemanha. Quer dizer, um tempo em que a solidariedade operária é concebida como internacional em estrutura e internacionalista em objectivos (Waterman, 1998: 17). Há que perceber as circunstâncias muito especiais em que esta identidade internacionalista da solidariedade emergiu: por um lado, a formação inicial de mercados de trabalho nacionais com elevadíssimos níveis de migração e, portanto, com uma grande fluidez de fronteiras; por outro, a exterioridade das comunidades de trabalhadores em relação às pátrias, quer pela sua exclusão dos direitos de cidadania política quer pela ainda incipiente oficialização de culturas e línguas nacionais oficiais.
A obra de E. H. Carr atrás referida coloca-nos perante a evidência da ruptura deste circunstancialismo tão especial. Uma ruptura que, como analisou Boaventura de Sousa Santos, consistiu essencialmente numa diferente articulação entre os eixos regulatórios da modernidade: comunidade, Estado e mercado e numa consequente “colonização da solidariedade pelas políticas sociais do Estado Providência” (1995: 23). Com efeito, a internacionalização do capitalismo destruiu por inteiro o mito da homogeneização do proletariado e edificou novas formas de diferenciação. Desde logo, uma diferenciação nacional: a internacionalização do capital, ao mesmo tempo que assentou numa intensificação dos níveis de competição entre os mercados nacionais (logo, também entre os operariados nacionais), criou condições para acréscimos de nacionalização, consubstaniados na integração/segmentação nacional das massas operárias (via partidos e sindicatos nacionais, via direitos de cidadania conferidos pelas constituições nacionais, via exércitos nacionais, via escolarização nacional) e na hostilização crescente da imigração em larga escala com o fechamento, primeiro económico e depois mesmo político, das fronteiras. Sobre esta base veio a registar-se uma “mudança de alianças”: “o Estado nação, que ainda antes da industrialização tinha sido solicitado a conferir protecção contra o mercado, passou a ser crescentemente invocado pelos movimentos operários para conferir protecção contra o capital internacional agora cada vez mais percebido em termos de capital de Estados-nação, de nacionais ou mesmo de nacionalidades estrangeiros” (Waterman, 1998: 24). Esta aliança estratégica entre estado e mercado desalojou as virtuais capacidades emancipatórias do princípio da comunidade, aqui materializado na horizontalidade solidária do movimento internacionalista operário. E o seu impacto fez-se sentir quer no neo-mercantilismo adoptado pelos países centrais quer nas experiências de estatismo exacerbado vividas, tanto no plano nacional como no plano internacional, pelos países oficialmente fiéis à doutrina do internacionalismo proletário. Com a agravante de, aí, essa fidelidade ter ficado associada à permanência na periferia do sistema mundial e se ter transfigurado em puro alinhamento apriorístico por um dos blocos no quadro da guerra fria.
Foi o mesmo desvirtuamento do internacionalismo, decorrente da sua subordinação às estratégias de afirmação dos Estados-nação, que prevaleceu no chamado internacionalismo terceiro-mundista dos anos 60 e 70 (Waterman, 1999). A pujança histórica das dinâmicas de libertação nacional relativamente ao colonialismo prolongou-se no tempo, determinando, com naturalidade, uma sobreposição do processo de construção dos estados nacionais ao universalismo solidário, acabando este por se restringir, as mais das vezes, ao relacionamento entre elites revolucionárias, frequentemente a partir dos respectivos aparelhos de estado.
1.2- A fragmentação canonizada: o realismo
O mundo interestatal vestefaliano foi transformado pelo discurso realista das Relações Internacionais em senso comum. O realismo é uma expressão específica do clima cultural do positivismo científico, que bebe nele a radical contraposição entre factos e valores e atribui absoluta prioridade epistemológica aos primeiros sobre os segundos. Imperativo é, por isso, para o senso comum realista, captar as regularidades ou leis subjacentes aos factos e adoptá-las como leis segundo as quais o sistema internacional deve funcionar. A constância empírica adquire assim estatuto de verdade científica e de dever ser. Ora, esta transposição de uma certa realidade empírica para o discurso científico e normativo sacralizou três representações do mundo sobejamente conhecidas.
A primeira é a do individualismo estatal. O sistema interestatal, de que o “dilema de segurança” é o permanente, é o oposto do Rechsstaat weberiano. Vale o estado de natureza eterno, sem instâncias de monopolização da violência legítima pelo que cada Estado zela acima de tudo pela sua segurança e sobrevivência recorrendo a todos os meios incluindo a força. A segunda imagem do mundo legada pelo código realista é a de um campo de luta pelo poder. Toda a política é e a política internacional é-o obviamente por excelência, assumindo o “interesse nacional definido em termos de poder” como referência primordial. Sendo a prudência a melhor das virtudes, cada Estado está desafiado a olhar suspeitosamente para os demais, como inimigos potenciais e não como parceiros possíveis. E por isso, em última análise, toda a regulação é auto-regulação (Starr, 1995). Finalmente, a terceira componente do senso comum realista á a apologia do eterno presente (Pureza, 1999: 370). Na sua busca de regularidades que permitam uma interpretação da realidade internacional, o realismo olha obsessivamente para o passado, na tentativa de “aprender com a História”, demitindo-se, portanto, de pensar a transformação dessa realidade.
A nossa herança de décadas é, pois, a da subalternização das distintas procuras de vias de emancipação à lógica da segmentação territorialista e estatocêntrica. Essa conjugação entre os princípios do estado e do mercado, entre nação e economia, relegou a promessa de uma comunidade internacional concebida secularmente como uma sobreposição da horizontalidade das relações cidadãs à hierarquização das relações inter-estatais para o estatuto de “irrealista” e “utópico” e, por isso, de marginal. A natureza confinadamente nacional dos processos de construção do Estado Providência constituiu uma consolidação, no plano social, da dinâmica de fragmentação política internacional começada em Vestefália. O internacionalismo solidário, só escassissimamente experimentado como embrião de alternativa a essa dinâmica, acabou por convergir para ela e ser por ela esvaziado.
2. Globalização hegemónica e governação global
Esta pesada herança de segmentação nacional dos velhos movimentos sociais e da sua implicação nos compromissos nacionais entre capital e trabalho converteu-se num elemento chave do modelo social do capitalismo global.
Mas, neste novo contexto, a articulação entre o princípio do estado e o princípio do mercado, mantendo-se embora como matriz de estruturação do modelo social e político, foi transportada para uma nova escala, o campo da economia global. No nosso tempo, ao contrário do que se registava no quadro do capitalismo liberal e do capitalismo organizado, o argumento das vantagens comparativas, tecido segundo pressupostos de nacionalismo económico e político pelos clássicos, perdeu capacidade descritiva da realidade. Deixou de fazer sentido pensar em termos de combinações nacionais de capital e trabalho em concorrência com outras combinações nacionais no mercado internacional. No seu lugar surgem capitalistas globais que competem entre si por recursos, mercados e trabalho em todos os países (Daly, 1999). Deste modo, à centralidade das vantagens comparativas substitui-se a centralidade das vantagens absolutas que pauta o actual quadro de concorrência oligopolista, isto é, entre um conjunto restrito de grandes empresas de capital transnacional que, pelo jogo dos investimentos cruzados e da reengenharia institucional (fusões e takeovers transnacionais e trans-sectoriais, formação de grupos de sociedades ou constituição de joint ventures) acabam por estar confrontadas em múltiplos sectores do mercado mundial.
É certo que a globalização está longe de significar uma integração com a mesma intensidade de todos os países no novo cenário. A economia política da globalização, é bom lembrar, faz situar a génese desta dinâmica na resposta ao declínio dos ganhos dos países centrais na crise do capitalismo ocorrida na década de setenta. E essa resposta, alicerçada na fragmentação da produção associada à disseminação mundial dos investimentos directos, não foi dispersa globalmente, com as tarefas de baixa especialização a serem remetidas para as economias periféricas e as actividades envolvendo maior incorporação de investigação e desenvolvimento a serem retidas no centro. Deste modo, o desenvolvimento tecnológico e a investigação apresentam níveis de globalização muito inferiores à generalidade dos processos produtivos e aos circuitos de distribuição e consumo final (Mittelman, 1996). Há, pois, uma manifesta falta de globalidade na globalização, como vinca José Reis quando se refere ao “universo-da-não-globalização” e à realidade do de-linking2.
Apesar disso, porém, há uma profunda mudança de referências da economia política global e é nela que se está a operar uma reconfiguração de escala e de intensidade da articulação hegemónica entre os princípios do estado e do mercado. Essa nova articulação hegemónica assenta em dois enunciados que se completam. O primeiro é o da inevitabilidade da miniaturização e despolitização do Estado nacional. O segundo é o da necessidade de compensar agilmente esta fragilidade a um nível supra-nacional ou global.
2.1- O redireccionamento do Estado
A condução da globalização dos mercados segundo uma lógica neo-liberal determinou uma evidente fragilização ainda que obviamente diferenciada, em função da posição ocupada por cada Estado concreto na hierarquia do sistema mundial dos Estados na sua função de garantia do contrato social e das inerentes políticas de inclusão. A globalização assim conduzida atribui toda a prioridade à complementaridade entre autonomia dos mercados e “Estados facilitadores” (Falk, 1999: 1), orientada para a liberalização, a privatização, a desregulamentação da economia, a retracção dos gastos com bens públicos e dos encargos com o bem-estar social, a plena mobilidade dos capitais e o sujeição do mercado de trabalho em simultâneo a um estrito controle internacional e a uma total flexibilidade nacional.
Não se trata, pois, de um puro e simples esvaziamento do Estado enquanto estrutura regulatória. A submissão dos Estados à disciplina do capital global provoca uma destruição institucional selectiva, assente no questionamento da legitimidade do Estado para governar a economia. Essa destruição selectiva significa, como assinala Maria Eduarda Gonçalves3, não tanto o recuo do Estado quanto o redireccionamento deliberado das suas prioridades para a regulação da sua própria desregulação, de acordo com Boaventura de Sousa Santos4.
Tal como a construção realista legitimou teoricamente o estatocentrismo e a segmentação agressiva, assim também a reconfiguração do Estado no contexto da globalização predatória aparece legitimado por um novo tipo de canon teórico, também ele assimilado como senso comum, que Held (1999: 3) denomina de pensamento hiperglobalista para o qual a globalização constituirá uma fase completamente nova em que “os Estados-nação se tornaram unidades económicas não naturais ou mesmo impossíveis (Ohmae, 1995: 5) e Boaventura de Sousa Santos reconduz ao “consenso de Washington”5, colocando o acento na correspondência aí veiculada entre pujança desejável da sociedade civil e debilidade e minimalismo do Estado.
A concepção neo-liberal da governação global é o complemento dessa destruição selectiva.
Em si mesmo, o conceito de governação global é vazio de orientação política. A Comissão sobre Governação Global refere-se-lhe como constituindo “a soma das muito diversas formas como os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, gerem os seus assuntos comuns”, envolvendo não apenas as relações intergovernamentais, mas “também as organizações não-governamentais, os movimentos de cidadãos, as empresas multinacionais e o mercado global de capital” (1995: 2-4). A mesma superação do nível formal de análise da governação é sublinhada por James Rosenau (1998): “governação global não se refere apenas a instituições e organizações formais através das quais se exerce ou não a gestão dos assuntos internacionais”, incluindo quaisquer “sistemas de regulação, a todos os níveis da actividade humana da família à organização internacional em que a prossecussão de objectivos através do exercício de controle tenha reprecussões internacionais”. Também Vaÿrynen define a governação global como estando referida “às acções colectivas para o estabelecimento de instituições e normas internacionais que respondam às causas e consequências dos problemas supranacionais, transnacionais ou nacionais” (1999: 25). A consciência quer da distância crescente entre a procura cada vez mais intensa de políticas para problemas globais e a capacidade de oferta dessas políticas pelos Estados e organizações intergovernamentais tradicionais, quer da correspondente assunção de funções de formulação de políticas globais por instâncias de poder não formal (Mingst, 1999: 92) conduzem na literatura contemporânea, a um registo de diferenciação entre governo e governação. Finkelstein, por exemplo, aponta que “a governação global é a capacidade de governar, sem autoridade soberana, relações que transcendem as fronteiras nacionais. A governação global faz internacionalmente aquilo que os governos fazem no plano doméstico” (1995: 369). devemos a James Rosenau a definição mais conclusiva da “governação sem governo”: “governo sugere actividades que são apoiadas por autoridades formais, pelo poder político (…), enquanto governação se refere a actividades apoiadas em valores partilhados que podem derivar ou não de responabilidades ditadas por via legal e formal e que não requerem inevitavelmente o apoio do poder político para superar as reservas e garantir o cumprimento” (1992: 4). Rosenau não deixa, no entanto, de apontar que a crescente importância da governação sem governo evidencia “uma nova forma de anarquia (…) que envolve não apenas a ausência de uma autoridade superior mas inclui também uma tal desagregação da autoridade que permite uma muito maior flexibilidade, inovação e experimentação no desenvolvimento e aplicação de novos mecanismos de controle” (1998)
Ora, esta neutralidade política do conceito de governação global e o seu distanciamento face ao conceito tradicional de governo têm sido utilizados como suportes de uma representação da governação global adequada à minimalização dos entraves regulatórios à globalização neo-liberal. Uma tal esterilização política do horizonte de governação global tem assentado em duas estratégias retóricas principais. A primeira consiste em ocultar os défices institucionais do sistema internacional sob a enfatização do novo papel ocupado pela “governação em rede” fundada em parcerias entre sector público, sector privado e “terceiro sector” (Risse, 1999: 94). A segunda estratégia consiste em apresentar indiferenciadamente os actores não governamentais ou do “terceiro sector” como suportes de dinâmicas de governação global, pretendendo ignorar a sua distinta relação com o exercício do poder à escala mundial (seja em termos tradicionais seja sob a veste mais actual de ).
2.2- O desinvestimento institucional da governação global neo-liberal
A afirmação de redes internacionais entre governos, organizações internacionais, actores privados e organizações não-governamentais transnacionais enquanto mecanismos de governação global é inquestionavelmente um fenómeno de primeira importância na cartografia institucional da globalização. A ela voltarei no fim deste capítulo. Mas a flexibilidade associada à horizontalidade e desagregação da governação sem governo vem sendo usada como argumento de deslegitimação de processos de construção institucional internacional multilateral.
Quer dizer, a hegemonia dos pressupostos neo-liberais na condução da globalização pôs em crise a “velha” contraposição entre Vestefália e a Carta das Nações Unidas como focos inspiradores de dois “modelos” de ordem internacional. Esta contraposição, elaborada por autores como Antonio Cassese ou Richard Falk, é sintetizada por Danilo Zolo no contraste entre quatro características paradigmáticas: a) exclusividade dos Estados como sujeitos do Direito Internacional no modelo de Vestefália alargamento da personalidade jurídica internacional activa às organizações internacionais, aos povos e mesmo aos indivíduos no modelo das Nações Unidas; b) inexistência de “legislação” internacional vinculativa no modelo de Vestefália reconhecimento de normas imperativas no modelo das Nações Unidas; c) inexistência de poderes de polícia e de sanção na ordem de Vestefália consideração dos crimes internacionais como na ordem das Nações Unidas; d) liberdade discricionária de recurso à força e à guerra no modelo de Vestefália centralização dos poderes punitivos na ONU no modelo das Nações Unidas (1997: 94-96). Trata-se, pois, de uma construção que enfatiza a densificação institucional e o “constitucionalismo global” como desejáveis acompanhamentos formais da globalização.
Bem diferentemente, o cenário institucional e constitucional da globalização neo-liberal aposta no desinvestimento institucional (captável na profunda crise das organizações políticas intergovernamentais do sistema das Nações Unidas) e na conformação de regimes universais de desregulamentação (de que o letárgico acordo multilateral de investimentos constituiria exemplo cimeiro). Em todos os planos político, ambiental, económico o “move to institutions” como suporte de uma governação global de sentido regulatório tem sido substituído pelo estabelecimento de mecanismos normativos transnacionais de promoção da eficiência, da estabilidade e do crescimento como pilares valorativos de uma governação global de inclinação neo-liberal.
O debate em torno do alegado “direito de intervenção humanitária” é emblemático desta tendência para a subalternização do institucional. A essa figura reconduz-se, aparentemente, não mais do que a exigência de uma sequência coerente para o impacto transformador dos direitos humanos, enquanto gramática da convivência universal. Ao carácter blindado do princípio da não ingerência nos assuntos internos dos Estados, pedra-de-toque do Direito Internacional tradicional adequado ao sistema estatocêntrico, substituir-se-ia, na ordem pós-vestefaliana contemporânea, o direito senão mesmo o dever jurídico de intervir, pela força das armas, para impor em outros Estados o cumprimento dos direitos humanos fundamentais.
É inequívoco que o humanitarismo corresponde a um impulso moral genuíno, que marca aliás o Direito Internacional Humanitário desde o sonho filantropo de Henri Dunant: a disponibilidade gratuita para ir em socorro das vítimas. Talvez François Mitterand tenha sintetizado melhor do que ninguém a insustentabilidade da tradicional exigência de consentimento do Estado territorial para a efectivação desse socorro em situação de catástrofe: “nenhum Estado é proprietário do sofrimento que produz ou que acolhe”. Foi sobre este espírito que se desenvolveu a dinâmica de reivindicação de um direito-dever de ingerência, cristalizada na Conferência Internacional sobre Direito e Moral Humanitários, organizada em Paris em 1987, por Bernard Kouchner e Mario Bettatti.
Todavia, o que está em causa é bem mais do que uma perspectiva puramente ético-jurídica. O que quer que seja a ordem internacional pós-vestefaliana, ela não pode ignorar a persistência de algumas traves-mestras da ordem de Vestefália. Desde logo, a desigual distribuição de poder. E, neste contexto, cabe perguntar o que haverá de efectivamente novo no discurso da intervenção humanitária. Como faz Richard Falk (1998: 103): “Estaremos nós fundamentalmente perante uma mudança na realidade discursiva, de tal forma que o que mudou foi o discurso e não o comportamento, com os Estados mais importantes a manterem uma opção de discricionaridade para o uso da força?”
Ao ser apresentada como a única saída para a inoperância quer das soberanias fechadas quer das instituições multilaterais, o pretendido direito unilateral de intervenção humanitária assume-se como uma clara expressão do desinvestimento institucional característico de um entendimento neo-liberal da governação global. Estamos pois perante uma falsa alternativa. A verdadeira escolha neste terreno é, como lembra Olivier Corten (1993: 185) “entre uma ‘nova ordem internacional humanitária, enquadrada e regulada pela Organização das Nações Unidas, e um ‘direito de ingerência’ cujo exercício é deixado à livre apreciação unilateral dos Estados mais poderosos, e cuja efectivação faz surgir o perigo de a nova ordem mundial vir a ser a expressão da pax americana “.
2.3- O terceiro sector, entre o internacionalismo solidário e a globalização hegemónica
A emergência de expressões da sociedade civil transnacional na governação global faz-se sentir em três planos. Em primeiro lugar, no estabelecimento de uma agenda de prioridades globais, à qual governos e organizações intergovernamentais são forçados a reagir. A acção dos movimentos humanitários “sem fronteiras” na exigência da consagração de um direito/dever de ingerência humanitária ou a pressão das ONG’s ambientalistas para o establecimento de um regime internacional vinculativo sobre alterações climáticas, são duas expressões maiores desta realidade. Em segundo lugar, a acção das ONG’s transnacionais é canalizada para a elaboração de tratados internacionais veja-se a influência da International Coalition on the Ban of Landmines (ICBL) no conteúdo do Tratado de Otava sobre interdição de minas anti-pessoais. Enfim, em terceiro lugar, as ONG’s são compreendidas, em virtude do seu conhecimento e informação qualificados sobre a realidade no terreno, como mecanismos de controle da efectiva aplicação dos regimes convencionais transnacionais, como sucede, por exemplo, com a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch no domínio dos direitos humanos (Risse, 1999: 93).
Esta presença da sociedade civil transnacional no coração da governação global, muito embora possa ser percebida como um sinal de (e simultaneamente um teste a) um ressurgimento do princípio da comunidade num espaço regulatório até agora hegemonizado pelos princípios do estado e do mercado, não significa, porém, automaticamente, um acréscimo inequívoco de democraticidade e de sentido contra-hegemonico relativamente às formas tradicionais de governação do sistema interestatal (Risse, 1999: 95). O universo do chamado mundo não-governamental é profundamente heterogéneo e não pode arriscar-se uma afirmação generalista de participação desse mundo, como um todo, numa refundação solidária do internacionalismo.
Este imperativo de uma percepção diferenciada do terceiro sector passa, em meu entender, por duas considerações fundamentais. Em primeiro lugar, pela atenção ao que Boaventura de Sousa Santos designa por conflito entre responsabilizações ascendentes e descendentes das organizações não-governamentais (1999: 30). Trata-se da tensão entre a consideração das exigências dos financiadores e a atenção às aspirações dos destinatários da acção das ONG’s. As soluções que, em cada caso, sejam encontradas para esta tensão e o conteúdo político da agenda determinada pela supremacia de um dos termos fazem oscilar as actuações concretas das organizações entre um internacionalismo solidário e um serviço à afirmação dos interesses hegemónicos. Em segundo lugar, pela intensidade dada à qualidade democrática do funcionamento das ONG’s concretas. Como sublinha Thomas Risse (1999: 96), o teste desta democraticidade faz-se na avaliação do carácter inclusivo ou excluente da sua actuação e na abertura/publicidade do seu funcionamento interno e externo (nomeadamente através da avaliação dos seus desempenhos segundo padrões de eficiência de resultados).
3. Um novo internacionalismo para um novo modelo social global
O luto de Vestefália não nos legou nenhum modelo institucional determinado mas sim horizontes em aberto. Perdida a referência ao estatocentrismo absoluto e exclusivo, o nosso tempo pós-vestefaliano é tanto o da experimentação da hegemonia descontrolada como o da oportunidade de uma nova cultura regulatória.
O conteúdo político e institucional da governação global é, pois, não um dado mas antes um objecto de disputa. E é precisamente aqui que reside a importância fundamental da reconstrução do internacionalismo solidário. Para as tradições ideológicas do sistema mundial moderno quer para a liberal quer para a marxista sociedade e Estado confundiam-se, pelo que ambas apontavam para uma integral equivalência entre relações internacionais e relações inter-estatais (Pureza, 1999). A reconstrução do internacionalismo solidário arranca da superação dessa subordinação ao mundo do interestatal. Ela está a ocorrer intersticialmente em dois planos que se completam. Um que assenta nos velhos movimentos sociais e cujo sentido se poderia sintetizar com o jogo de palavras empregue por Peter Waterman: “da internacional da imaginação à imaginação de uma nova internacional” (1998: 42). Outro que rompe com a lógica territorialista e assume-se como discurso regulatório e institucional fundado numa nova comunidade imaginada, ao ponto de a própria expressão internacionalismo (inter-nacionalismo) deixar de se lhe poder aplicar com rigor.
3.1- Novos caminhos para os velhos movimentos sociais
No quadro de uma economia global, abrem-se duas opções estratégicas à intervenção transformadora do movimento sindical: ou permanece amarrado aos pactos sociais nacionais, colaborando na estratégia de condicionamento do modelo de protecção social pela capacidade competitiva das economias nacionais, ou se reconstitui como movimento social de combate à lógica da internacionalização do capital. Esta busca da genuinidade alternativa supõe uma ampla série de rupturas, enunciadas por Bourdieu (1999) com a sequência seguinte: “ruptura com as especificidades nacionais das tradições sindicais”; “ruptura com um pensamento de concórdia que tende a desacreditar o pensamento e a acção crítica e a valorizar o consenso social”; “ruptura com o fatalismo económico”; “ruptura com um neo-liberalismo hábil a apresentar as exigências inflexíveis de contratos de trabalho leoninos sob a capa da ‘flexibilização'”; ruptura, enfim, com o “social-liberalismo”.
Sobre estas rupturas é possível entrever a edificação de um movimento sindical que reencontre no internacionalismo solidário a sua estratégia própria. Há, desde já, duas transformações que se perfilam como sinais desse reencontro inovador. Em primeiro lugar, a centragem das lutas sindicais sobre o aumento da precarização decorrente da “flexeploração” (Bourdieu, 1999). Em segundo lugar, a conversão do movimento sindical à protecção dos trabalhadores imigrantes e ao combate conjugado entre imigrantes e nacionais contra as lógicas económicas que determinam a emigração. A resposta a estas duas exigências, e a outras que são inerentes ao capitalismo global, supõe o aprofundamento de práticas sindicais só incipientemente ensaiadas no nosso tempo: a institucionalização da negociação sindical internacional, o estabelecimento de regras transnacionais de coordenação salarial e de condições de emprego, o reforço dos comités de empresa ou das comissões de trabalhadores nas redes globais de empresas (vulgo multinacionais), a exigência de regulação das políticas de contratação de imigrantes. Eis um conjunto de indícios de uma viragem cosmopolita do movimento sindical.
O manifesto ascendente do territorialismo estatocêntrico sobre a prática transnacional da solidariedade resistente faz acreditar que estas transformações, a verificarem-se, terão, no entanto, um alcance fatalmente limitado. Embora possam devolver densidade regulatória ao princípio da comunidade, isso não será suficiente para desalojar a combinação entre os princípios do estado e do mercado do seu estatuto de supremacia e para reconfigurar radicalmente o modelo social dominante.
Uma superação efectiva dos impasses a que aquela combinação conduziu só pode passar por uma ruptura completa com dois vícios herdados do passado. O primeiro é o fechamento territorialista característico da cultura política vestefaliana. O segundo é o seu oposto, uma certa crença pós-vestefaliana no espaço infinitamente aberto e na comunidade mundial não só simbólica mas real. Bem vistas as coisas, se o primeiro está evidentemente esgotado, o segundo acaba por se reconduzir afinal à presunção moderna em que liberalismo e marxismo convergem de que etnicidade e nacionalismo são arcaísmos que a força impetuosa da modernidade há-de acabar por destruir. Não creio que algum destes cenários se ajuste a uma reconfiguração do intenacionalismo solidário adequada ao nosso tempo de globalização. Por um lado, contrariamente ao que sugeria o primeiro marxismo, o internacionalismo solidário cosmopolita não tem no horizonte uma subalternização das raízes identitárias (desde logo nacionais) a uma identificação de base estritamente classista. Por outro lado, contrariamente ao que crê o liberalismo triunfante, o Estado (e as identidades fragmentadas que o fundamentam) continua a ser um mecanismo apetecido e útil. O que este tempo traz consigo de mais fecundo é precisamente a experimentação diversificada de uma nova conjugação entre um efectivo corte com a cultura territorialista e estatocêntrica e uma renovação profunda dos papéis desempenhados pelos actores cruciais dessa mesma cultura: os Estados-nação.
Como sugere Boaventura de Sousa Santos6, esses horizontes de ruptura vêm-nos fundamentalmente das concretizações do cosmopolitismo e do património comum da humanidade como construções solidárias, e por isso alternativas aos modos hegemónicos de globalização.
3.2- O cidadão peregrino e o cosmopolitismo
Porventura ninguém melhor do que Richard Falk terá sintetizado a especificidade do cosmopolitismo como forma contra-hegemónica de internacionalismo. Referindo-se ao impacto desestruturador que a globalização acarreta para os conceitos tradicionais de cidadania e de comunidade, Falk (1995: 95; 1999: 153) assume como ponto de partida a ambivalência da fragilização dos laços territoriais entre indivíduos e Estado assim provocado. Com efeito, esta diminuição da intensidade das velhas lealdades está na base quer de expressões chauvinistas de resistência à globalização quer de fórmulas alternativas de conceber o universo de pertença que colocam as identidades múltiplas no âmago de uma sociedade civil global fundada num ethos de democracia cosmopolita 7. É neste sentido que Falk sugere o conceito de cidadão peregrino, no qual vê a síntese de uma comunidade humana imaginada articulada sobre os valores da não violência, da justiça social, do equilíbrio ecológico e da democracia participativa. A presença da metáfora do cidadão peregrino constitui um factor de distinção entre o novo cosmopolitismo solidário e o velho cosmopolitismo burguês do fim do século. Com efeito, o conceito de cidadão peregrino congrega as duas vertentes de uma reconfiguração cosmopolita do internacionalismo solidário: por um lado, um exercício da cidadania marcado pela primazia do princípio da responsabilidade solidária (ecos de Jonas e de Lévinas) sobre o princípio da autonomia individual; por outro, um tratamento uniformemente cuidadoso do peregrino pelos poderes onde ele transitoriamente se abriga. O tópico do cidadão peregrino traz para o centro da agenda do internacionalismo solidário cosmopolita uma ética de cuidado (), que se materializa num primado internacional dos direitos humanos (com especial ênfase para os dos refugiados e imigrantes “ilegais”), da biodiversidade e da solução solidária da crise da dívida externa.
3.3- O património comum da humanidade e o Estado militante
Uma reconfiguração pós-vestefaliana do internacionalismo solidário não pode confundir-se com uma apressada ostracização do Estado. Pode o Estado ser um actor genuinamente solidário na sociedade global? Eis como a questão é colocada por Mariano Aguirre (1998):
“A solidariedade evitou durante muito tempo o papel do Estado. Quando era só caridade, bastava a vontade individual canalizada através da Igreja. Quando era compromisso político com causas revolucionárias, bastava a relação aberta ou clandestina com os que faziam a revolta e os que a aopiavam de fora. (…) Mas agora a solidariedade é desenvolvimento económico e sustentável; é denunciar e exigir que se forme um tribunal internacional sobre crimes de guerra, é coordenar diversos actores para operar em poucos dias numa zona de guerra em que estão a morrer centenas de milhares de pessoas. (…) Nenhuma destas tarefas se pode fazer sem o Estado”.
No quadro da reconfiguração solidária do contrato social à escala global, é, em meu entender, legítima a consideração articulada da emergência do “cidadão peregrino” e do “Estado militante”. Boaventura de Sousa Santos sublinha que um dos momentos decisivos dessa reconfiguração é a transformação do Estado nacional em “novíssimo movimento social”. Esta transformação envolve, para ele, a emergência de “uma nova forma de organização política mais vasta que o Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais e globais” (1998: 42). Trata-se assim de dar um conteúdo e um sentido alternativos ao redireccionamento neo-liberal do Estado que analisei no ponto 2.1. Sugiro que eles se densificam segundo duas linhas fundamentais: as parcerias contra-hegemónicas com ONG’s transnacionais e as concretizações contra-hegemónicas da boa governação.
Considerar o Estado como novíssimo movimento social, longe de significar uma miniaturização uniforme do Estado, torna-o num objecto privilegiado da luta das forças políticas democráticas pela transformação do Estado em componente do espaço público não estatal (1998: 43). Esse é precisamente um primeiro significado da expressão “Estado militante”: a transfiguração da clássica matriz vestefaliana da soberania estatal em disponibilização dos canais de política externa para o patrocínio de causas animadas na sociedade civil global e que, também pelo seu conteúdo político, integram uma perspectiva contra-hegemónica da globalização. A articulação entre ONG’s transnacionais e Estados na promoção de “bandeiras” internacionais não é nova: o campo da protecção internacional dos direitos humanos ou de equilíbrios ambientais globais, ou até mesmo da edificação de regimes internacionais genéricos são expressões clássicas dessa articulação. Mas a experiência do Estado militante evoca uma realidade com contornos inovadores, sobretudo pela sua intensidade acrescida: do que se trata agora é do estabelecimento de parcerias entre alguns Estados sem ambições geopolíticas e coligações transnacionais de organizações não-governamentais, em que os primeiros assumem o papel de potenciadores internacionais das aspirações contra-hegemónicas formuladas pelas ONG’s, assumindo-as como suas. É de algum modo esta nova fisionomia que está subjacente ao desenho do “Estado solidário pós-moderno” () proposto por Richard Falk: “os Estados solidários pós-modernos alinham com forças sociais progressistas em vários cenários específicos e recusam cumprir a disciplina do capital global se os respectivos resultados determinarem a produção de danos sociais, ambientais e espirituais” (1999: 6).
A associação do Canadá ao movimento não governamental transnacional de luta pela interdição das minas anti-pessoais e o protagonismo de Portugal no encaminhamento das propostas da Comissão Mundial Independente para os Oceanos para os grandes fora inter-governamentais são apenas dois exemplos, entre outros possíveis, de que o novo internacionalismo solidário encontra no Estado militante um novo protagonista.
O chamado “processo de Otava” (Lawson, 1998) que conduziu à celebração do tratado de 1997 sobre proibição das minas anti-pessoais, traduziu-se numa intensa articulação entre coligações de ONG’s e alguns governos, liderados pelo Canadá. O governo canadiano respondeu, em primeiro lugar, à campanha interna levada a cabo por organizações como a Mine Action Canada (MAC), tendo sido o primeiro país membro do G7 a declarar unilateralmente uma moratória à produção, uso, armazenamento e comércio de minas anti-pessoais, seguindo a iniciativa da Bélgica, Noruega e Áustria. Esta viragem internacional de um posicionamento interno consumou-se na Conferência de Otava de Outubro de 1996, preparada e conduzida em conjunto pelas autoridades do Canadá e pela ICBL, em que participaram 74 Estados (dos quais 50 favoráveis a uma proibição total). Dessa conferência resultou o repto canadiano a que todos os países assinassem um tratado de proibição até fins de 1997 e, mais do que isso, uma Declaração e uma Agenda de Acção que constituiram a base de negociação adoptadfa quer pelo governo do Canadá quer pelas ONG’s para o comprometimento de outros governos no processo. As duas conferências seguintes (Bruxelas e Oslo) mais não fizeram do que partir destes dois textos para a composição do Tratado de Otava, que foi aberto à assinatura em Dezembro de 1997.
A presença de Portugal na dinamização de um regime internacional de protecção do oceano constitui outra ilustração desta primeira acepção de Estado militante. Como analiso noutro local8, a política externa portuguesa em matéria de regulação internacional dos oceanos caracteriza-se por um padrão de alinhamento passivo com as principais potências. Isso mesmo ficou patente na evolução da posição portuguesa na negociação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM): de uma grande proximidade com as propostas tendentes à comunitarização dos fundos oceânicos, inspiradas na filosofia da Nova Ordem Económica Internacional, Portugal inflectiu rapidamente para a adopção de posições concertadas com os países membros da Comunidade Europeia adversas a uma tal orientação de regime, e que se vieram a consumar no acordo relativo à aplicação da Parte XI que esvazia integralmente a inicial fórmula comunitarista da CNUDM (Pureza, 1998: 239). Ora, este padrão de alinhamento passivo apresenta um brusco desvio a partir de 1995, com um importante conjunto de iniciativas em matéria de diplomacia oceânica, cujo pólo foi a actividade da Comissão Mundial Independente para os Oceanos (CMIO) e que se traduziram na proposta de proclamação pela ONU de 1998 como Ano Internacional dos Oceanos, na centragem do trabalho temático da VII Sessão da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (Abril de 1999) sobre “oceanos e mares” e, para este último efeito, na adopção de uma posição comum da União Europeia sob clara e assumida liderança portuguesa. Neste contexto, Portugal não só deu voz às propostas de ONG’s e de comunidades epistémicas, como acabou por ser, ele próprio o primeiro alvo dessa pressão, ao ver-se, moral e politicamente, obrigado a concluir um arrastado processo de ratificação da Convenção sobre o Direito do Mar para poder arrogar-se legitimidade nas iniciativas referidas.
O segundo sentido da expressão Estado militante decorre do impacto transformador trazido pelo princípio do património comum da humanidade às relações internacionais. A dinâmica aberta pela intervenção do embaixador de Malta nas Nações Unidas, Arvid Pardo, em 1967, conduziu à reivindicação (ou mesmo à adopção formal) de regimes internacionais para alguns recursos naturais comuns (como os fundos marinhos longínquos, a Lua ou alguns bens culturais e ambientais) baseados numa indiferenciação trans-espacial e trans-temporal da humanidade (Pureza, 1998). O princípio da solidariedade intra-geracional, com uma discriminação positiva dos povos mais pobres no acesso aos bens do património comum e aos benefícios da sua utilização económica, foi prolongado num princípio de solidariedade inter-geracional, com uma exigência de gestão parcimoniosa que salvaguarde os direitos e oportunidades das gerações futuras.
Convergindo embora neste núcleo de critérios definitórios, aquelas positivações jurídicas do regime de património comum da humanidade evidenciam uma trajectória em que podem detectar-se duas fases substancialmente distintas, do ponto de vista do contraste com a lógica territorialista dominante. São as duas idades do património comum da humanidade.
A primeira idade abrange as manifestações de positivação do regime relativamente a espaços comuns como o espaço exterior ou os fundos marinhos longínquos onde nunca anteriormente se havia feito sentir a afirmação de pretensões territoriais. Nesses casos, a contestação da territorialização faz-se de fora do espaço dessa mesma territorialização. Assumindo-se portanto como ilhas espacialmente delimitadas no oceano das soberanias territoriais, os espaços qualificados como património comum da humanidade não vão além de um espacialmente diminuto remanescente da apropriação crescente, por isso mesmo confirmando a contrario a matriz territorialista do sistema internacional. A discrepância entre os projectos iniciais de Malta, tendentes à qualificação do espaço marítimo no seu todo como património comum da humanidade, e o alcance espacial da Parte XI da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar é algo que vem manifestamente em apoio desta apreciação.
As situações que classifico como a segunda idade do património comum da humanidade traduzem-se na aplicação deste regime a bens e recursos como os bens culturais ou ambientais classificados como património mundial pela UNESCO situados dentro do domínio de jurisdição espacial dos Estados. Neste contexto, a matriz territorial é obviamente abandonada. O princípio do património comum da humanidade passa a actuar dentro do reduto da soberania territorial dos Estados e o significado maior da consagração deste princípio é justamente a alteração profunda da lógica de exercício da soberania do Estado. Não se trata, obviamente, de constituir um património independente, de que é titular a comunidade internacional, com base em bens retirados à jurisdição dos Estados. O que se opera é antes uma profunda transformação no modo de actuar dos Estados relativamente a esses bens e recursos. A lógica territorialista dá lugar, neste novo quadro, a uma gestão desses espaços e bens guiada pela noção de função social e ecológica a função social e ecológica da soberania, ampliação planetária da função social e ecológica da propriedade e referenciada directamente à trans-temporalidade e à trans-espacialidade da Humanidade. O que significa que, nesta “segunda idade”, o regime de património comum da humanidade se materializa na transformação da soberania-domínio em soberania-serviço.
Eis, pois, uma segunda faceta assumida pelo Estado enquanto novíssimo movimento social do internacionalismo solidário: a sua disponibilização, num quadro de “responsabilidades comuns mas diferenciadas” (para usar terminologia da Declaração do Rio de 1992), para ser agente de uma certa boa governação () de bens e espaços que constituem preocupação comum da humanidade, isto é, de acordo com critérios de precaução ecológica e justiça distributiva internacional.
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Cfr. capítulo 1 deste livro.
Cfr. capítulo 2 deste livro.
Cfr. capítulo 9 deste livro.
Cfr. capítulo 1 deste livro.
Cfr. capítulo 1 deste livro.
Cfr. capítulo 1 deste livro.
Em sentido próximo, António Sousa Ribeiro analisa a relação entre identidades múltiplas, fronteira e mestiçagem no capítulo 12 deste livro.
Cfr. capítulo 11 do volume IV desta colecção.
Published 26 April 2002
Original in Portuguese
First published by Boaventura de Sousa Santos (ed.), Globalização: Fatalidade ou utopia?,
Porto, Afrontamento, 2001
Contributed by Revista Crítica de Ciências Sociais © José Manuel Pureza
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