Libertem a Nação: Cosmopolitismo já!
“Cosmopolita” já foi um termo pejorativo usado para acusar judeus, anarquistas, pacifistas e todos os que se recusassem a aceitar a regra das fronteiras fixas impostas pelos estados-nação. Hoje, noutro momento decisivo da História, o cosmopolitismo volta à cena. Neste artigo, Per Wirtén aborda o seu significado actual e histórico. A religião encontra-se já separada do estado. O mesmo deverá suceder à nação.
Ao mesmo tempo que as granadas sérvias bombardeavam a cidade de Vukovar, no nordeste da Croácia – uma premonição sinistra da crueldade sistemática que caracterizou depois as guerras jugoslavas – eu lia A ponte sobre o Rio Drina, um livro de Ivo Andric, escrito nos anos cinquenta. Recordo ainda nitidamente uma das personagens desse romance que documentava a vida na pequena cidade de Visegrad, do século XVI até à 1 Grande Guerra Mundial: a estalajadeira judia Lotte, uma mulher forte, mas profundamente infeliz. Nos últimos anos, essa memória tornou-se ainda mais intensa e, sempre que deparo com os nomes familiares de Jean-Marie Le Pen, Pia Kjærsgaard, Jörg Haider – ou me confronto com os apelos sucessivos de governos ocidentais para que a Europa se feche ao resto do mundo – a figura de Lotte surge como um símbolo de outra natureza.
Natural da Polónia, Lotte caminhou até Visegrad onde estabeleceu o Hotel zur Brücke, o edifício mais alto que a insignificante cidade ostentava. Nessa altura, o império Turco tinha perdido a sua hegemonia e a Bósnia era uma província do reino austro-húngaro. A população original de muçulmanos, cristãos ortodoxos e judeus revitalizou-se, misturando-se com imigrantes de outras regiões da Europa.
À noite, Lotte fechava-se no seu pequeno escritório a que ninguém tinha acesso. Aí, numa secretária atafulhada de cartas, documentos, recortes de jornais austríacos e listas de lotaria de todos os cantos da Europa, ela levava a sua segunda, e talvez mais plena, vida. Era a partir daquele pequeno espaço que ela se correspondia com pessoas de toda a Europa do leste, financiava os estudos universitários de familiares mais jovens na Galiza, aconselhava, comentava os acontecimentos das grandes cidades, comprava e vendia acções na Bolsa de Viena ou analisava as notícias do Mercado financeiro dos centros metropolitanos. Apesar de estar fortemente integrada no quotidiano multi-étnico de Visegrad, Lotte pertencia também a uma rede judaica sem fronteiras que colocava em contacto pessoas separadas por grandes distâncias. Na sua essência, o lar era uma multiplicidade de lugares. Visegrad era a sua cidade, mas a sua verdadeira pátria era constituída pelo conjunto de ligações que estabelecia a partir do seu escritório. Assim, os conceitos de lar, identidade e pertença assumiam, para Lotte, significados sobrepostos, uma vez que a sua realidade era a de uma vida cosmopolita levada numa pequena cidade rural.
No século XVIII, Voltaire e outros filósofos do Iluminismo enunciaram os princípios básicos de uma política cosmopolita. Para eles, a pátria era simplesmente a República: uma comunidade política em que a repressão reforçada por uma monarquia corrupta era substituída pela lei, liberdade e soberania, não sendo assim representada por uma certa cultura, lingua ou etnicidade. O conceito de estado de Voltaire era a República, não o Estado-Nação.
Mas foi o clássico A Paz Eterna escrito em 1785 por Immanuel Kant que se converteu no texto cosmopolita par excellence. Enquanto Voltaire se debruçou sobre o fundamental da República, Kant centrou-se nas relações entre as Repúblicas e um sistema de Direito internacional. Em certa medida, as suas ideias foram materializadas através das Nações Unidas, da Declaração dos Direitos Humanos e de diversas convenções internacionais. Por outro lado, a República de Voltaire foi pulverizada pelo nacionalismo. Na época, “cosmopolita” era um termo depreciativo aplicado aos judeus, comunistas, anarquistas, pacifistas, e a todos os que recusassem o apelo, feito em nome do Estado-Nação, à homogeneidade étnica, cultural, linguística, e religiosa. A Guerra Fria não se limitou apenas a dividir efectivamente o mundo, mas conseguiu que os princípios do cosmopolitismo fossem relegados para a esfera do devaneio privado. Contudo, a queda do Muro de Berlim fez regressar estas questões à arena internacional, ajudando-nos a reflectir sobre o que um país ou estado devem ser e como se deverá definir a qualidade de vida num mundo sem fronteiras, trazendo uma nova luz, embora bastante familiar, à (des)ordem internacional.
Há uns anos, ao ler um livro bem diferente, Novas e Velhas Guerras da investigadora británica das questões da paz e dos conflitos, Mary Kaldor, lembrei-me subitamente de Lotte e da sua secretária. Kaldor sustenta que a guerra da Bósnia pôs em confronto duas visões diferentes do mundo: a visao nacionalista, estritamente étnica e de exclusão face à visão cosmopolita de pluralismo e inclusão. Contudo, a sua descoberta mais importante é a constatação de que os cosmopolitas nem sempre são aqueles que se espera que o sejam.
Tal como se veio a verificar, os que partilhavam as ideias cosmopolitas viviam em pequenas cidades e aldeias e escondiam os refugiados, salvando-os assim das limpezas étnicas e preparando o caminho para a co-existência. Muitos deles nunca frequentaram a universidade ou sequer saíram alguma vez do lugar onde nasceram. Pelo contrário, muitos dos nacionalistas croatas e sérvios tinham tido o que geralmente consideramos uma vida cosmopolita: educados em universidades estrangeiras, sentiam-se “em casa” em todos os grandes aeroportos e poderiam conversar descontraidamente com as elites políticas e financeiras mundiais. No entanto, politicamente eram etno-fascistas. Assim, Kaldor provou efectivamente a falsidade de um pressuposto sólido: o de que a tradição cosmopolita é sempre representada pela elite, enquanto que os camponeses sem educação são os defensores das ideias nacionalistas e intolerantes.
A Guerra na Jugoslávia, ao demonstrar tão claramente as consequências horrendas do nacionalismo e das políticas étnicas, constituiu um sério alerta para a maioria dos europeus. Mais uma vez, a tradição cosmopolita parecia ser uma alternativa possível. Teoricamente, a emergência de um nacionalismo europeu de direita, racista, hostil aos muçulmanos, judeus, ou a todos os que tenham pele escura pode provocar o mesmo efeito e conduzir a uma situação em que o nacionalismo surge cada vez menos como uma alternativa viável.
O cosmopolitismo apresenta uma perspectiva que conjuga diversas discussões paralelas: o impacto do multiculturalismo e da globalização; o que é local e global, o eu e os outros. Mas a verdadeira força do cosmopolitismo advém do facto de já não ser apenas fruto de uma teoria, mas de surgir de condições sociais reais, de experiências de vida – à semelhança da vida de Lotte no Hotel zur Brücke. Isto mesmo é expresso pelos quatro editores no prefácio à antologia Cosmopolitanisms, recentemente publicada – o cosmopolita emerge da camada “baixa” das hierarquias sociais:
Os cosmopolitas, hoje, são frequentemente as vítimas da modernidade, os que não conseguiram ter sucesso na lógica capitalista da ascensão social e foram despojados do conforto e hábitos da pertença nacional. Refugiados, membros da diáspora, migrantes e exilados constituem o espírito da comunidade cosmopolita.
Richard Falk e Mary Kaldor, ambos especialistas em Direito Internacional, conjuntamente com os cientistas políticos David Held e Daniele Archibugi procuraram elaborar, ao longo dos anos 90, uma alternativa de carácter cosmopolita aos desafios politicos da globalização. Enquanto que a democracia se constituiu norma no contexto da política interna pós-1989, na opinião de Held e Archibugi, as relações multilaterais encontram-se ainda muito camufladas pela diplomacia e foram influenciadas pelos movimentos democráticos em muito menor grau. Na realidade, as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, a União Europeia e outras instituições continuam a tratar dos seus assuntos como se nada tivesse sucedido. O acesso do público à informação é limitado e os cidadãos não têm capacidade para exigir que os detentores do poder lhes prestem contas.
Held e Archibugi assinalam, com preocupação, que, num mundo fortemente globalizado, os modelos autoritários de governo derrotarão os modelos democráticos. No sentido de contrariar esta tendência, a comunidade internacional terá que possuir uma base democrática suficientemente forte, capaz de forçar os regimes totalitários a uma abertura e democracia crescentes. Sem uma democracia de índole cosmopolita, o envolvimento das comunidades locais não conseguirá sobreviver. “O objectivo é a criação de uma comunidade democrática que simultaneamente implique e atravesse os estados democráticos.”
Evidentemente que as convenções e tratados internacionais que sucessivamente limitaram a soberania do Estado-Nação foram influenciados pelas ideias de Held e Archibugi, embora estes autores ainda pensem que este processo terá ainda de ser mais alargado e mais igualitário. De facto, esta pretensão constitui um desafio a uma noção básica: a de que a democracia apenas funciona dentro dos limites do Estado-Nação e num contexto cultural idêntico.
E é precisamente neste terreno que se trava o conflito fundamental entre o sistema actual dos Estados-Nação e a tradição cosmopolita.
Para os cosmopolitas, a política, a democracia e a transparência – a Ágora grega – representam um local de encontro, onde se pode criar a identidade colectiva de um país e os laços de solidariedade entre os seus cidadãos. As semelhanças culturais e o sentimento de comunidade nacional não são pré-requisitos para a democracia. Pelo contrário, a democracia pode ser constituída por muitas nações, religiões e culturas. A variedade e a diferença constituem vantagens, e não obstáculos, de acordo com o pensamento republicanos de Hannah Arendt e Jürgen Habermas.
Held e Archibugi tentaram especificar melhor o conceito de uma democracia cosmopolita internacional, sugerindo, em primeiro lugar, a reforma das Nações Unidas. Uma vez que esta organização já apresenta características de uma ágora política global, a sua dimensão de forum de debate internacional e de decisões democráticas pode ser reforçada. Daniela Archibugi recomenda a criação de uma segunda câmara, uma asembleia geral de representantes directamente eleitos e a reformulação do Conselho de Segurança de modo a abolir o direito de veto ou a dificultar a sua utilização. Defende também o reforço de poderes do tribunal internacional dos Direitos Humanos, a possibilidade de existência de queixas individuais e, evidentemente, um Tribunal de Crimes de Guerra (cujas competências se encontram actualmente no Tribunal Penal Internacional).
Esta estratégia diminui claramante a soberania nacional e coloca em questão o sistema de soberania dos Estados-Nação, definido após o Tratado de Paz de Vestefália, em 1648. É importante reforçar a ideia de que o objectivo principal do cosmopolitanismo é privilegiar a democracia e as políticas daí decorrentes em detrimento da soberania do Estado-Nação.
Held é muitas vezes criticado pelo facto de a teoria da democracia cosmopolita e global poder conduzir, na prática, a um governo mundial altamente centralizado e autocrático. Trata-se de uma objecção importante, já mencionada por Emmanuel Kant em A Paz Eterna. Contudo, Held revela algum cuidado ao assinalar que a autonomia de cada país não desaparecerá; em vez disso, e em conjunto com a União Europeia, representará a espinha dorsal do sistema. À semelhança do federalismo, o poder deve residir nas bases e ser conduzido para cima, por delegação. Este modelo pode ser encarado como uma estrutura de relações de poder democráticas em diferentes níveis e em diferentes locais, empenhada em traduzir as preocupações da globalidade – uma estrutura cosmopolita. Dito isto, devemos continuar a olhar com algum cepticismo qualquer tentativa de criar sistemas pesados e demasiado abrangentes, e o pensamento de Held e Archibugi não constitui excepção.
A questão é a de que valor atribuir ao optimismo de Held num mundo que, desde o 11 de Setembro de 2001, está a reordenar-se de acordo com a “Guerra contra o terrorismo”. Neste cenário, as Nações Unidas e outras instituições globais e entidades jurídicas acabaram por ter um papel mais periférico do que de liderança, constiotuindo esta mudança um motivo ainda mais urgente para que se continue a insistir na necessida de uma ordem internacional diferente e mais democrática.
Ao nível do quotidiano, a soberania nacional é também colocada em causa pelos padrões migratórios que tendem a criar um fenómeno que alguns cientistas denominam de rede trans-nacional.
No início dos anos 90, a socióloga Peggy Levitt analisou a vida dos cidadãos da aldeia de Miraflores, na República Dominicana: quer dos que ali permaneceram, quer dos que tinham partido para os EUA, para uma zona de Boston, conhecida por “Jamaica Plains”. Os laços entre estes dois lugares eram, e são ainda, muito fortes – cerca de 2 em cada 3 cidadãos de Miraflores têm parentes a viver em “Jamaica Plains” – e os contactos são, não apenas diários, mas estendem-se a todos os níveis da sociedade: pessoas, dinheiro e modos de vida fluem nos dois sentidos. No livro Transnational Villagers, Levitt refere este fenómeno como uma aldeia transnacional.
As migrações influenciam quer aldeias isoladas, quer toda a República Dominicana. Quase 10% da sua população vive hoje nos EUA e as transacções financeiras que fazem representam cerca de metade do orçamento nacional. Dito de outra forma, a República Dominicana está altamente dependente dos seus emigrantes e começou, por isso, a institucionalizar os laços entre a “Diáspora” e a terra natal. Os partidos politicos incluem, agora, Dominicanos-Americanos em lugares dirigentes e possuem delegações em Boston e Nova Iorque, onde investem largas somas nas suas campanhas. Em 1996, foi autorizada a dupla nacionalidade e, no ano seguinte, a lei eleitoral foi alterada no sentido de conceder o direito de voto e de candidatura a cargos públicos aos que tinham antes perdido a nacionalidade dominicana por opção pela americana. Esta última iniciativa constitui uma mudança fundamental no modo como um Estado-Nação funciona e se perspectiva a si próprio. As fronteiras da República Dominicana – geográficas e de cidadania – muito simplesmente esbateram-se, ficaram porosas. No Congresso da República Dominicana existem diversos representantes dos EUA e estão a desenvolver-se conversações para que Nova Iorque seja considerada formalmente como um distrito eleitoral na geografia política do país.
Levitt descreve como as pessoas e o estado se transformam por influência das migrações, como ambos se adaptam e criam um sistema potencialmente gerador de uma política cosmopolita e aberta mas que, paradoxalmente, poderá conduzir precisamente ao seu oposto; a um Estado-Nação assente numa forte etnicidade. O resultado final será determinado pelos valores políticos, mas é possível que a República Dominicana esteja a transformar-se num “país transnacional”.
Na Europa de Leste, estão a desenvolver-se processos semelhantes, embora não tão evidentes. Por exemplo, a um cidadão turco que viva e trabalhe na Suécia é possível continuar a ser um cidadão turco com quase todos os direitos civis, sem que para isso tenha de optar pela nacionalidade sueca. A relação entre Estado-Nação e cidadania, que antes era um dado adquirido, está a dissolver-se de dia para dia. Os cidadãos da União Europeia podem votar em qualquer lugar, independentemente do local de emissão do passaporte, o que aumenta o seu potencial de continente cosmopolita, mas que não garante, por si só, tal objectivo. Este corolário pode ser apenas o resultado de uma escolha política consciente entre valores e perspectivas diferentes.
Todas estas questões se destacam no debate sobre o multicultural. O conceito de Estado-Nação assenta na ideia de uma origem comum e na partilha de valores culturais, aspectos que encontramos nas filosofias raciais desenvolvidas nos séculos XVII e XVIII. Como consequência, os migrantes tiveram que aceitar a subordinação, uma vez que, devido à sua “diferença” eram vistos como uma ameaça à harmonia e equilíbrio nacionais. Uma citação do político dinamarquês conservador Birte Rønn Hornbech demonstra bem esta tendência:
A Dinamarca é um país construído à volta de um povo […] o Cristianismo dinamarquês, a História, a cultura, os nossos conceitos de democracia e de liberdade têm de continuar a ser os alicerces da Dinamarca […] Não queremos uma Dinamarca em que os dinamarqueses se transformem numa minoria étnica precária e em que a nossa liberdade seja destruída.
Justaposta, encontramos a perspectiva multicultural cosmopolita e a aceitação da diversidade e do movimento contínuo entre todas as fronteiras étnicas, culturais e religiosas ligadas à identidade. Como consequência, os laços entre Nação e Estado têm de ser cortados. A Suécia não pode continuar a considerar-se um estado para a nação sueca, mas um estado e uma pátria composta de muitas nacionalidades. Mais uma vez, voltamos ao cerne da questão, em que os conceitos de nação, etnicidade e cultura se têm que adaptar. De facto, um dos objectivos da perspectiva cosmopolita é o de redefinir estes conceitos, infundir-lhes um novo significado e substituir o seu potencial destrutivo causador de tantas guerras e tensões. À semelhança da religião, nação e etnicidade têm de ser separadas da política e do estado. Na prática, segundo a perspectiva cosmopolita, os partidos e movimentos racistas tendem a ser integrados, mesmo que, segundo a tradição do pensamento europeu, sejam olhados como inaceitáveis.
Uma sociedade anti-racista e multicultural não pode assentar nos mesmos pressupostos do nacionalismo. Os governos da Europa Ocidental escolheram o caminho mais fácil para se defenderem do ataque do nacionalismo de direita: fronteiras mais fortes, vigilância policial mais apertada e uma maior ênfase na homogeneidade cultural e nacional. A tradição cosmopolita evidenciou que as ligações entre raça e filosofia, nacionalismo e o Estado-Nação têm vindo a provocar esta espiral negativa há décadas. Partindo deste princípio, a Europa tem de encarar a União Europeia e os fenómenos migratórios como uma oportunidade para se libertar da herança nacionalista e permitir que, daqui para a frente, uma política global ocupe o lugar da nação, raça e etnicidade.
Como já referi, há um certo número de objecções que se podem levantar quanto à perspectiva cosmopolita. Não se trata apenas de serem evidentes os contornos de um super-estado global, mas temos também de considerar a objecção nacionalista de que a homogeneidade cultural constitui um pré-requisito para a democracia e reflectir sobre a clássica questão do âmbito da democracia. Talvez seja desejável aplicá-la apenas a uma área limitada – uma cidade, um país ou uma região – de modo a evitar a fragmentação e o esvaziamento do seu significado.
Devemos reflectir ponderadamente sobre a ligação entre o cosmopolitismo e uma elite desenraizada e privilegiada. A aristocracia anarquista de ontem é, hoje, o conjunto de quadros especializados que se desdobram em reuniões de conselhos e comissões de consultadoria – são pessoas maioritariamente sem ligações sociais a lugares ou a outras pessoas. O que resulta da sua influência são as tendências para uma homogeneização cultural global e para a comercialização em nome das grandes multinacionais, o que, a prazo, contribui para a extinção das redes locais e para a alienação do poder político
Um dos conflitos que este novo interesse pelo cosmopolitismo continua a não conseguir resolver é o existente entre o universal e o particular. Este dilema clássimo é abordado na antologia Cosmopolitics por um grande número de filósofos.
Kant e outros primeiros cosmopolitas consideravam inquestionável a existência de um certo número de regras morais, independentemente do lugar ou do contexto. Mas a noção do universal, tal como foi equacionada pelo pensamento europeu, foi sempre criticada. Existirão, de facto, valores eternos? Não serão estes, na realidade, perspectivas em constante mutação e desenvolvimento que são reformuladas pelo sentido crítico e pela experiência? Não será, então, necessária uma certa dose de relativismo na formulação de um conceito de democracia onde o diálogo e a sociedade civil ocupam um lugar central? Muitas feministas e estudiosos do pós-colonialismo já demonstraram como o universalismo pode ocultar um sistema injusto e um exercício de poder desigual. Em “I rational, You Jane.” Defendem que o mundo universal é sempre pré-fabricado num centro de poder para depois alastrar às periferias.
Apesar de a antologia apresentar soluções diferentes para este conflito, muitas convergem num ponto: tendo por base a crítica do universalismo, reconhecem a necessidade de criação de valores e regras globais. Uma diferença digna de nota é a de que estes serão agora formulados a partir da perspectiva diferente da dos privilegiados: a perspectiva do emigrante dominicano, do refugiado curdo, do palestiniano despojado do seu estado, do sem-terra de Chiapas. O antropólogo James Clifford define este ponto de vista como “cosmopolitismo sem nostalgia universalista” – e, para evitar a armadilha da regimentação e da centralização, avança com a ideia de muitos cosmopolitismos discordantes.
O filósofo liberal Kwame Anthony Appiah – nascido no Gana e a trabalhar nos USA – relata um dos casos mais interessantes nesta matéria, o caso do seu pai, um homem que descreve como “um cosmopolita com raízes” e de quem herdou esta perspectiva cosmopolita. Para Appiah, num país multi-étnico como o Gana, esta postura de um cidadão patriótico, mas cosmopolita foi uma consequência conjunta da influência colonial, da educação londrina do seu pai e da cultura Asante local.
Apesar do seu profundo envolvimento com um lugar e uma cultura, o seu pai considerava que as raízes não tinham qualquer valor se não pudessem ser transportadas para outros lugares. Depois da sua morte, os filhos encontraram uma carta em que formulava e lhes transmitia esta visao do mundo. ” Lembrem-se de que são cidadãos do mundo”; a carta continuava, dizendo-lhes que tinham o direito de viver em qualquer parte do mundo, desde que o quisessem, mas com o dever de deixar os lugares por onde vivessem “melhores do que quando tinham chegado”.
Assim, segundo Appiah, um patriota cosmopolita deve ter um sentido de responsabilidade moral e política que se estende para além da sua nação e pátria. Não se trata apenas de um sentimento de responsabilidade por toda a humanidade, envolve também a compreensão de que existem modos de vida diferentes e que ” não precisamos de lidar com pessoas de outras culturas apesar das nossas diferenças, mas podemos conhecê-las, de uma forma humana e civilizada, através das nossas diferenças.”
A época entre a queda do muro de Berlim, em 1989, e os ataques terroristas em Nova Iorque e Washington D.C., em 2001 reforçou o cosmopolitismo como um modo de vida, uma perspectiva da sociedade, mas também como um sistema de interpretação da realidade contemporanea e dos destinos individuais transnacionais cada vez mais frequentes. A guerra americana contra o terrorismo ameaça acabar com o cosmopolitismo como uma forma possível e realista de viver em sociedade: os muros re-erguem-se ainda mais fortes, a nacionalidade torna-se o centro das atenções e acendem-se os debates sobre o grau de definição e homogeneidade de cada cultura em conflito com outra. Contudo, para milhões de pessoas, o cosmopolitismo é uma experiência do quotidiano, faz parte do modo como esse quotidiano é gerido e mina a ordem mundial que a guerra contra o terrorismo nos quer fazer aceitar. Os cosmopolitas já não representam a Utopia, mas sim uma contra-estratégia bastante realista em oposição à face repressiva do mundo que, por tanto tempo, tem imperado.
E, para terminar, qual foi o destino de Lotte em Visegrad?
A 1 Guerra Mundial provocou, de forma brutal, o fim do seu negócio. Saíu do país com a família, entrou em depressão e refugiou-se numa escuridão silenciosa e apática. A sua vida cosmopolita, levada no escritório secreto do último andar do hotel, tinha começado a desintegrar-se alguns anos antes da guerra. O mundo tornou-se cada vez mais claustrofóbico até 1930 e a 2 Guerra Mundial e a cortina de ferro não destruíram apenas o que restava da sua rede – todo o seu modo de vida foi reduzido a uma memória distante.
Lotte terminou a sua vida como refugiada, em Sarajevo, uma cidade que, poucos anos depois de eu finalizar o romance de Andric, era uma miniatura do mundo de Lotte – uma tentativa desesperada de defender a ideia de uma Europa mais cosmopolita e de revolta contra o combate nacionalista pela homogeneidade étnica e pela rigidez das fronteiras.
Published 19 January 2003
Original in Swedish
Translated by
Conceição Carvalho
Contributed by ZonaNon © Arena / ZonaNon / Eurozine
PDF/PRINTNewsletter
Subscribe to know what’s worth thinking about.