Jeans e véus
Islã de jeans
No meio de Bascarsija, o bairro velho de Sarajevo, bem perto da escada do antigo chafariz e entre os pombos, uma senhora idosa está tirando sua saia, camisa, sapatos e por fim sutiã e calcinha. Os comerciantes na vizinhança viram suas cabeças, olhando para o céu. Ninguém quer ver a senhora nua. “São muitos deles hoje em dia”, diz um homem num tom seco. Loucos. Os habitantes de Sarajevo se acostumaram com eles desde a guerra com a Sérvia.
“Quando perdi minha mãe, senti que precisava começar a acreditar em alguma coisa apenas para sobreviver”, conta Sanela, 26 anos, estudante de economia na Universidade de Sarajevo. Foi no segundo mês da guerra, quando toda a família estava reunida na sala de jantar, que um míssil arrebentou com a parede, atingiu e feriu seu irmão caçula e matou sua mãe. “Eu tinha apenas 18 anos, meu pai estava trabalhando na Alemanha e fiquei sozinha com meus irmãos e irmãs mais novos”, lembra. Ela foi ajudada por um velho médico que trabalhava para uma organização religiosa e conseguiu tirá-los da cidade. Seis meses depois, ele morreu de câncer. “A morte de minha mãe, a guerra, o médico… tudo isso me influenciou muito e fiquei mais religiosa. Meu marido, que está trabalhando como técnico de computador para a União Européia, também me disse: ‘agora que você escolheu o caminho da religião, deve fazer o que o Islã espera.'”
Sanela é uma das jovens da Bósnia que decidiu usar o véu islâmico. Antes da guerra com a Sérvia, eram poucas as mulheres que usavam o véu – algumas meninas que freqüentavam a Medresa (escola corânica) e algumas senhoras nas cidades pequenas. O véu não era proibido abertamente, embora não fosse permitido nas escolas e a cabeça devesse estar descoberta nas fotos de identidade. Religião não era tão importante então. Bolos tradicionais nos feriados islâmicos – esse era praticamente todo o islamismo na Bósnia.
Depois da guerra, uma infra-estrutura religiosa gradualmente começou a aparecer. No bairro velho, a lojinha de souvenirs transformou-se em ponto de vendas de vestidos do Islã. Lojas especializadas em artigos religiosos vem abrindo – pode-se comprar bússolas que apontam a direção de Meca e despertadores que acordam ao som de “Allah akbar” – Deus é grande. Todos os produtos são importados de países árabes, então são mais caros. Livros sobre o tipo de vida professada por Maomé têm aparecido e, nas pequenas cidades, uma apostila descrevendo a noite de núpcias islâmica tornou-se popular. “Antes da guerra, as pessoas preferiam dar a seus filhos nomes que não mostrassem a origem religiosa, como Vera ou Zlatko. Agora, nomes como Ahmad ou Muhammed tornaram-se muito populares nas comunidades muçulmanas”, diz um observador internacional. Palavras da velha e esquecida língua turca estão voltando e algumas pessoas começaram a se cumprimentar dizendo “Salam alaikum”. Estas mudanças afetam principalmente a nova geração dos muçulmanos bósnios. “O que acaba acontecendo é que as mães usam mini-saias e as filhas, o véu”, conta Edina Keameica, jornalista especializada em problemas sociais.
“As pessoas acabam pensando ‘os sérvios queriam nos matar porque éramos muçulmanos, então vamos nos mostrar como muçulmanos'”, explica um observador internacional. “Nós estávamos morrendo aqui e a Europa não fez nada”, tenta completar Almedina, uma moça de meia idade da Associação da Juventude Muçulmana. Seus olhos são cinza, a pele clara, seu rosto tipicamente eslavo. Ainda assim, toda vez que sai de casa veste um casaco escuro, meias pretas, luvas pretas, e cobre seu rosto com um véu preto. “Preto é bom”, diz Azra, “porque não chama a atenção dos homens. É como se você fosse invisível na rua.” No início da guerra, ela casou com um marroquino e deixou o país para a terra do marido. Agora que voltou à Bósnia, o casal está vivendo com seus dois filhos numa cidadezinha chamada Bocinia. Antes da guerra, ali era território sérvio. A igreja ortodoxa parcialmente destruída no topo do morro é a única lembrança daquele tempo. Hoje, os Mujahedeen, guerreiros estrangeiros que vieram à Bósnia de países árabes durante a guerra, moram lá.
É tarde. Apenas homens e crianças estão fora de casa. Eles usam barbas espessas e vestem roupas afegãs. A praça central é ocupada pela nova mesquita, um prédio alto com cortinas verdes e uma bandeira verde à porta. De lá, ouve-se o canto de versos do Corão – apenas vozes masculinas.
Ao longo da rua principal, a cada poucos metros há um grande barril laranja, incomum em outras cidades, e o aviso “seja limpo”. Enquanto uma loja é apenas para mulheres, as outras duas estão abertas a todos, mas o cartaz alerta: “Irmãs devem usar um vestido islâmico”. Há dois médicos na cidade – um homem para os homens, uma mulher para as mulheres. Azra está muito ocupada com sua nova casa e os dois filhos, mas duas vezes por semana se encontra com outras mulheres para recitar o Corão. O emir da cidade, Emjan Abu Abdulrrahman, veio à Bósnia da Síria antes da guerra para estudar medicina. Ele, como outros Mujehedeens, casou com uma bósnia, o que lhe permitiu a permanência em Bocinia. Hoje em particular, ele e os outros estão um pouco solenes. Esperam visitantes do leste europeu e Estados Unidos, convidados do Acampamento de Verão Muçulmano. “Irmãs, vou arranjar acomodações para vocês”, diz num convite gentil para mim e minhas guias, achando que viemos para o evento. Mas o emir se recusa a conversar com jornalistas. Ele até pede à polícia local que confira nossos passaportes. “Por que você os incomoda?”, o policial pergunta brusco. “Eles estão apenas vivendo de acordo com os mandamentos do Corão!” Meliha, 22 anos, está quase chorando: “Não é tradição bósnia expulsar visitantes dessa maneira! O emir me disse para ir e não mais voltar. Como pode ele, um árabe, me dizer isso em meu próprio país? Ele diz que representa o islã verdadeiro. Mas este não é o islã bósnio!”
Meliha veio à Bósnia dos EUA apenas para as férias. Mora lá com a família desde o início da guerra. Graças a uma bolsa que ganhou por ser uma aluna excelente, conseguiu entrar na Universidade de Washington, onde estuda biologia. Vinda de uma família religiosa, costumava praticar o islã. Mas só começou a usar o véu em Washington: “Me senti sozinha. Tinha medo daquele mundo. Você conhece um garoto e no dia seguinte ele quer ir para a cama contigo. Vestindo o véu, me sinto mais segura. Ninguém me propõe mais essas coisas.” Mas Meliha não consegue entender o conselho muçulmano vindo dos países árabes. “Eles nos diziam que devíamos fazer isso ou aquilo, como calças de homens devem ir até o tornozelo. Mas o amor de Deus não depende do comprimento de minhas calças.”
Muçulmanos de países árabes costumavam se surpreender com o islamismo bósnio. É mais privado, menos restrito, muito mais relaxado. Principalmente, é europeu. No grupo que vai e volta pela rua Farhadija, no centro de Sarajevo, é possível perceber mulheres com lenços bastante coloridos ou outras com lenços e calças jeans. Isso não é comum em países árabes. A maioria das mulheres em Sarajevo nem usam o véu. Vestem saias curtas, camisetas justas e não se preocupam muito com o islã. Ao menos, não parecem se preocupar. “Para nós, Islã é apenas uma tradição”, conta Senka Kurtovic, uma jornalista. “Meninas usando véus na cabeça não são daqui, não de Sarajevo. Vêm das cidades pequenas.” Mas outra jornalista no mesmo jornal me disse que “as pessoas não sabem nada sobre o casamento no Corão, mas ele tem muitos aspectos positivos. Há muita pressão no lado oposto. Se não houvesse, eu usaria o véu.”
Fatima trabalhava como contadora de uma importante empresa de Sarajevo. Depois que sua empresa foi destruída pelas bombas, decidiu abrir uma pensão. Ela tem uns 40 anos, não freqüenta a mesquita, não reza e não gosta de meninas que usam véus. Ainda assim, no dia em que abriu o lugar comprou uma enorme foto de Meca e a pendurou na parede. Não sei se fez isso para os clientes ou para ela mesma. Mas, em todo caso, mostra que na Bósnia o Islã representa algo mais que bolos tradicionais ou feriados muçulmanos.
Published 25 July 2001
Original in English
Translated by
Pedro Doria
First published by Notícia e Opinião
© Notícia e Opinião
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