Dimítris Dimitriádis ou O desejo do texto

“Georges Bataille é escritor”: foi com esta concisa frase que o seu tradutor, Dimítris Dimitriádis, apresentou Bataille ao público grego, em 1980, na célebre introdução à História do Olho, nas Edições Agra. A formulação basta-se a si mesma, não precisa de qualquer outra definição adicional. A palavra “escritor” contém à partida o apelo, a procura, o sentido e o modo da existência. “O ser escritor – acrescenta Dimitriádis – determina tudo para o autor como para nós. É a necessidade da palavra que o conduz. E esta necessidade condu-lo, desde o início, ao centro do ser e ao modo da perscrutação do seu inabordável segredo.”

Raramente uma introdução de um escritor ao trabalho de outro escritor coloca, com tanta intensidade, uma tal dimensão programática relativamente ao seu próprio trabalho. Dimítris Dimitriádis funciona aqui como carismático alter ego de Bataille – já que nos seus escritos originais é também ele conduzido por uma poderosa corrente interior. Uma corrente que atrai para o centro do mundo/ do eu, que impele para uma impetuosa e inquietante incursão ao centro, ao coração do ser. Com o objectivo de o submeter a todas as experiências fortes, para o trazer à luz, imerso em inocência. “O ser escritor determina, nivela tudo, quer para ele, quer para nós.” Para o autor, a escrita não se esgota na observação, na descrição, no comentário, ou seja, na interpretação do mundo; Dimítris Dimitriádis penetra no mundo pela escrita, empreendendo a sua própria metamorfose: desmantela para construir desde o início, decompõe para reconstruir – até mesmo quando uma tal empresa messiânica se revela irrealizável, até mesmo quando o motivo fatal que alimenta o seu labor literário – desejo, perda, catástrofe – permanece sempre aberto.

Para realizar um empreendimento de tal dimensão, da catástrofe à aspirada catarse do mundo, convoca todos os géneros – poesia, teatro, narrativa, romance – sem, no entanto, se fixar em nenhum. Asfixia na imobilidade, no “carácter definitivo”, na “segurança” dos géneros literários. Tal como asfixia dentro dos limites geográficos e culturais gregos. “A Grécia exclui a identificação com ela – proclama – exclui a identidade. E tudo o que daí deriva. A familiaridade, o parentesco, a posse, a segurança. Nós, habitantes desta região geográfica, só como estrangeiros temos direito a confrontar os gregos. A confrontá-los como estrangeiros. Nós como não-gregos.”1

É pois paradoxal a caracterização de Dimítris Dimitriádis como escritor “grego” – e mais ainda, é claro, como “dramaturgo” grego! Obviamente, a nacionalidade grega acompanha-o para sempre – e, com ela, a angústia do seu distanciamento, a cisão entre as circunstâncias gregas contemporâneas e a mitologia que a sustenta: ortodoxia, valores humanos, etc. É precisamente nesta cisão, entre a existência social e a individual, que se localiza, por excelência, na Grécia, devido à sua insuportável carga hereditária, em ruptura com “a humanidade corrente”2, que funda a sua obra. Não é por acaso que surge pela primeira vez nas letras gregas com Morro como País. Tal como a heroína desta narrativa, não é de todo indiferente face ao seu país, não pode ser indiferente, permanece, pelo contrário, totalmente impregnado por ele. Impregnado da Grécia enquanto experiência da cisão, da perda, da “enganadora fachada”. Convido aqui o leitor a ler o acontecimento de 19723, que confessa a Y. Kalientzídis: “O que tenho escrito desde essa altura deve-se a isto. Porque isto já sou eu. Ou isto é eu.”4 O súbito desabamento das ilusões toma a forma da própria existência. Assim, quebram-se todas as suas relações com a cultura neo-helénica.

É obviamente sabido – sentimento que é recíproco – que o establishment cultural do seu país nunca superou uma certa desconfiança em relação à sua pessoa. Congrega indubitavelmente um público de fiéis – nos círculos de universitários, de intelectuais, de editores, de encenadores, de actores – que o seguem sempre, que procuram escrupulosamente cada nova publicação, cada nova encenação da sua obra, ou baseada na sua obra… Mas continua a ser considerado um caso marginal no campo das letras helénicas. Mesmo que a recente atribuição de um prémio pelo seu romance A Humanoidade tenha sido tornada pública em nome da “excepção”, o que pressupõe a representação da “dificuldade” e até da “total ilegibilidade”(!) da sua obra. Por fim, para abordarmos também a qualidade de escritor teatral, que aqui nos interessa particularmente, se bem que escreva teatro desde o ano de 1968, nunca foi aceite no seio da comunidade teatral grega. São poucos os artigos que se podem encontrar sobre o seu trabalho dramatúrgico e, nos mais recentes volumes panorâmicos, dedicados ao teatro neo-helénico, não é incluído.5 Esta circunspecta posição dos teatrólogos parece legitimar-se no facto de que, entre as suas obras teatrais publicadas nos últimos vinte anos do século XX (O Preço da Revolta no Mercado Negro, 1981; A Nova Igreja do Sangue, 1983; A Elevação, 1990; A Desconhecida Harmonia do Outro Século, 1992; O Princípio da Vida, 1995), só uma tenha sido representada na Grécia – a última – e apenas há dez anos. Durante a década de 80, nenhuma das suas obras foi levada à cena. Só no final desta década e no início da seguinte é que conquista os palcos gregos – mas com um texto narrativo!, Morro como País. Seguem-se as representações das obras teatrais O Princípio da Vida, com encenação de Stéfanos Lazarídis (1995), A Vertigem dos Animais Antes do Abate, encenada por Y. Huvardás (2000), Procedimentos de Regularização de Diferenças, com encenação de Yórgos Lánthimos (2003) e Yiórgos Sakalídis (2004), bem como o monólogo Oblívio, levado à cena por Thódoros Terzópulus (2002). Apesar desta ascensão, a crítica ignora-o ostensivamente, quando não o arrasa. Culpa das provocações, das faltas de respeito, da heresia dos temas? Ou, justamente, desta sua relação de rejeição com a “grecidade” que, quer queiramos quer não, foi assunto de discussão no seio da segunda geração de dramaturgos do pós-guerra? Porque, do ponto de vista morfológico, ninguém admite, de modo algum, que o teatro de Dimítris Dimitriádis opere tamanha heresia: pode colocar-se nos antípodas do Naturalismo e do romance realista de costumes, mas continua a ser um teatro dialógico, com intriga e personagens, um teatro no quadro das formas dramáticas tradicionais, tendo como modelo a tragédia grega antiga – não enquanto grego, mas na sua dimensão ecuménica: rigor da estrutura, ousadia dos temas. Mas, acima de tudo, o próprio autor excluiu o seu eu dos cânones da dramaturgia neo-helénica. A sua caracterização como “dramaturgo grego”, com as conotações que isso transporta, não é, portanto, adequada neste caso.

Mas nem a qualidade de “dramaturgo” – isenta de outras determinações – o descreve. Neste sentido, a recepção da sua obra em França, onde é considerado um dos mais vanguardistas dramaturgos contemporâneos, é algo enganadora, já que, precisamente, o seu nome foi associado quase exclusivamente ao âmbito do teatro! Com efeito, a sua presença nos palcos franceses tem sido, nos últimos anos, claramente mais intensa do que nos palcos gregos (encenações, leituras encenadas, etc.), o seu editor francês é especializado em teatro (Les Solitaires Intempestifs) e a sua inclusão em manifestações relacionadas com os progressos da dramaturgia contemporânea é constante. O público francês, aliás, conheceu-o – antes do grego – no âmbito do teatro, não no âmbito da literatura e, naturalmente, através de uma representação da sua obra O Preço da Revolta no Mercado Negro6, que foi considerada emblemática, já que, com os acontecimentos de 1968, foi uma das primeiras a ser escolhida… É claro que a representação, da responsabilidade da então ascendente estrela do teatro francês, Patrice Chéreau, pouca relação tinha com o próprio texto, como confessa o escritor. Este direito de violação do original concedeu-o, no entanto, o próprio dramaturgo: se observarmos com atenção, o texto apresenta o subtítulo “Proposta de obra”! Ou seja, já desde o seu primeiro texto teatral que Dimítris Dimitriádis mina a sua propriedade autoral e esta sabotagem é dupla: tanto da omnipotência do dramaturgo, como da omnipotência da obra. Paradoxo: um escritor que faz a sua estreia no território da literatura por via do teatro, renunciando ao estatuto de dramaturgo. E que se apodera perfeitamente do teatro com os seus textos narrativos: Morro como País, A Oferenda, Oblívio.

Acima de tudo, portanto: não grego, não teatral, mas simplesmente escritor. Escritor, no entanto, que interessa ao teatro – porque contém o teatro. Um laço interior, fundamental, constitutivo, é inerente à sua escrita e ao que constitui o teatro: o corpo, o tempo presente e a reivindicação da metamorfose. Reafirmando que a escrita teatral não se esgota na sua forma dramática.

Dimítris Dimitriádis entende a narração, para além dos géneros, como a inacabada, infinita inscrição do eu no mundo. E, com efeito, quanto mais o tempo passa, mais conscientemente concretiza a ruptura com a ideia do fim. O seu romance A Humanoidade. Um Infindável Milénio dá a perfeita dimensão desta empresa: os seus dez volumes – dos quais já foram publicados o primeiro e o sétimo – foram concebidos como apenas os primeiros de uma vertiginosa obra, que será constituída por outros mil, cada um dos quais, por sua vez, será constituído por outros tantos e assim por diante (recordamos ao leitor que esta monstruosa obra já tinha sido anunciada quinze anos antes, num texto narrativo de Dimítris Dimitriádis que é incessantemente ensinado nas escolas dramáticas, A Humanoidade. A Oferenda. Preâmbulo a um Milénio. Aí irrompe, pela primeira vez, no escritor “esta loucura”. “A infinita loucura, da infinita loucura da obra.”7)

O que é capital em Dimítris Dimitriádis é a ideia da Obra, não das obras: a Obra vive – as obras morrem, a Obra continua ininterruptamente, para além de cada fim e de cada perspectiva, a Obra é inatingível, incorruptível – as obras fenecem, são ultrapassadas. A Obra está para além das medidas, para além das regras, para além dos limites humanos. Só lhes obedece na transgressão. E relativamente a isto é “poética” – no sentido primordial do termo: demiúrgica, metamórfica. Enfim, a Obra é inelutável. Dita-a uma voz indeterminada, irresistível, de origem quase metafísica. O escritor, contudo, é completamente ateu. Para ele, não existem nem Deus, nem salvação, nem redenção. Então quem dita a Obra? Quem fala? A quem é que pertence esta voz sagrada e profética, anónima e sem rosto? Precisamente como nos rituais catárticos, em que o crente, sacudido por uma fúria sagrada, se torna um com o espírito de Deus, também nos textos de Dimitriádis o demiurgo tende a tornar-se um com a obra – que, naturalmente, não é outra coisa a não ser a própria escrita. E o leitor, um com a leitura, que, por sua vez, não é mais do que o outro lado desta escrita – “não começa nunca e não acaba nunca”8 – a sua “companheira”, a sua cara-metade. Esta participação extática, esta saída triunfal do eu que se realiza no movimento da mão – ou do olho – sobre a página, não traz nenhum conteúdo metafísico e não promete absolutamente nada, à excepção da própria tentativa. Este movimento natural, para além do que possa ser escrito, representado, lido, compreendido, palpado – apenas neste sentido, metafisicamente – não é mais nada a não ser uma corajosa afirmação do efémero, a expressão de uma rara reconciliação da literatura com o presente. É por isso que produz um corpo discursivo vivo, que pede para ser dito, para ser falado, para ser declamado, que deseja o palco para existir.

Os textos de Dimítris Dimitriádis – incluindo A Humanoidade (não me surpreenderia que algumas passagens da obra viessem a conhecer uma tradução teatral) – desdobram-se cadenciadamente como – umas vezes, monofónicas, outras vezes, polifónicas – inquietas composições, com pausas, intensidades, respirações interiores, refrães. Determinam-se, no fundo, na própria “incompletude” – segundo a famosa expressão da dramatóloga francesa Anne Übersfeld – que caracteriza os textos teatrais: “não são autónomos durante a leitura silenciosa.”9 A sua única esperança de completude, de se tornarem inteiros, radica no próprio actor, secreto alter ego do escritor e do leitor.

Oblívio e outros quatro monólogos

Com efeito, o actor é o receptor ideal destes textos. De cada vez que assisti a leituras encenadas, particularmente dos monólogos de Oblívio, é como se se produzisse a mesma química da voz com a palavra, como se o som e a letra se encontrassem pela primeira vez e se apaixonassem fulminantemente. O discurso apodera-se do corpo vivo e é magnetizado pelo seu flutuante movimento, a sua lenta mas firme evolução, as ininterruptas repetições, que impelem o narrador para cada vez mais longe do seu ponto de partida, para cada vez mais perto e cada vez mais fundo em direcção ao centro. Que ora se chama Derrota, ora Memória, ora Arrependimento, ora Arte, ora Oblívio.

Cinco monólogos – talvez cinco versões do mesmo ente – em que todos “falam como se lhes tivesse sido dada a palavra pela última vez […] como se o orador soubesse que, com cada palavra que pronunciasse, terminaria, gradualmente, a sua oportunidade de falar”, como anota o escritor na contracapa da edição grega. Cada um dos oradores tem um pesado passado. O primeiro, vontade de mudar o mundo sem resultado (Derrota), o segundo, anseio “até ao mais profundo desespero” (Memória), o terceiro perdeu tudo na sua vida (Arrependimento), o quarto não teve êxito na sua arte (Arte). Sobre o último, não sabemos absolutamente nada. Não quer que o conheçamos. É o seu corpo que lembra. Ele esqueceu-se (Oblívio). É ele e todos os anteriores juntos. Cinco seres que procuram a purificação, a retirada da dolorosa experiência do mundo, afirmando-se nela. O que os liga é, de facto, o anseio da afirmação, da aceitação, da reconciliação com o insuportável, o anseio da sua própria aniquilação, uma anulação, contudo, gloriosa e redentora.

Este artigo foi escrito por ocasião duma acção consagrada ao autor organizada pelo Atelier Eropéen de la Traduction/Scène National d’Orléans, Março de 2006.

Do texto de Dimítris Dimitriádis, Nós e os Gregos, Edições Agra, Atenas, 2005, p. 4.

Ibid.

Trata-se aqui de um acontecimento de carácter estritamente pessoal, a "desilusão" do dramaturgo face ao convencionalismo das celebrações litúrgicas do período pascal, desilusão sentida quando o autor estava a cumprir serviço militar obrigatório, na Grécia, no ano de 1972 (nota do tradutor).

Dimítris Dimitriádis, A Passagem para a outra Margem. Conversas com Y. Kalientzídis, Edições Agra, Atenas, 2005, pp. 201-205.

Vide, em particular, a Edição de materiais relevantes. Vinte Anos de Trabalho Teatral Neo-helénico, 1º Simpósio de Teatro Neo-helénico, Movimento Cultural Pan-helénico, Edições Letras Gregas, "A Arte do Espectáculo", 1999, e A Obra Teatral Neo-helénica durante a década de 1990, 2º Simpósio de Teatro neo-helénico, Movimento Cultural Pan-helénico, Edições Letras Gregas, "A Arte do Espectáculo", 2000.

Dimítris Dimitriádis, O Preço da Revolta no Mercado Negro, Edições Ákmon, 1981, reedição com apêndice analítico, Edições Neféli, "A Linguagem do Teatro", 2005.

A Humanoidade. A Oferenda. Preâmbulo a um Milénio, Edições Agra, Atenas, 1986, p. 22.

Vide o texto "Eu, a leitura" no apêndice da recente edição da obra de Blanchot, Aquele que não me acompanhava, tradução de Dimítris Dimitriádis, Edições Smíli, 2004, pp.135-141.

L' Ecole du spectacteur, Lire le Théâtre 2, Editions Sociales, Paris, 1981, p.11.

Published 30 July 2007
Original in French
Translated by José António Costa Ideias
First published by Revue Piissi, 26 (2005), 226-230.

Contributed by Artistas Unidos Revista © Dimitra Kondylaki/Artistas Unidos Revista Eurozine

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Read in: FR / PT

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