A Tradução como Metáfora da Contemporaneidade
Pós-Colonialismo, Fronteiras e Identidades
Os estudos de tradução, como é sabido, confinaram durante muito tempo a noção de tradução a limites relativamente estreitos, os limites do que tem sido chamado um modelo “language meets language”, restrito a relações entre textos no âmbito de processos de transferência interlinguísticos. Na formulação mais simples, mais simplista, esses processos pressupõem a unidade tanto da língua de partida como da de chegada, limitando a actividade de tradução à procura das equivalências adequadas à transferência de um sentido pré constituído de uma língua para outra – no limite, o tradutor não seria mais do que um simples intérprete, situado numa margem muito estreita e dotado de muito escassa autonomia. No estado actual dos estudos de tradução, é justo reconhecer que o modelo que referi já só pode ser visto como uma caricatura. De facto, esses estudos têm vindo a alargar a sua ambição epistemológica muito para além do simplismo desse modelo, o que implicou, como é sabido, entre outras consequências, uma marcada deslocação do eixo da linguística para o eixo dos estudos culturais e, concomitantemente, a crescente configuração como uma interdisciplina.
Neste processo, a questão da definição do conceito de tradução tem vindo, nas duas últimas décadas, a sofrer substanciais abalos. Um momento particularmente significativo está no pôr em causa do universalismo unívoco do conceito, redefinido agora de uma perspectiva contextualizante, o que Maria Tymoczko situa a partir das abordagens de Gideon Toury no início dos anos 80: de acordo com a definição proposta por este autor, tradução seria “todo o texto na língua de chegada que, seja por que motivos for, é apresentado ou considerado como tal no âmbito do sistema de chegada” (Toury, 1982: 27). Assim, como assinala ainda Tymoczko (2003), ficava aberto o caminho para um descentramento dos estudos de tradução, expresso, nomeadamente, na incorporação de perspectivas não eurocêntricas, já que uma definição como a proposta por Toury se aplica apenas a posteriori: é tradução o que funciona como tal num contexto específico, não o que se adequa à transcendência de um modelo pré concebido e tendencialmente prescritivo.
O modelo pluralizante subjacente à definição de Toury situa se, de todo o modo, ainda no âmbito de um paradigma textual. No entanto, mais recentemente, a perspectiva dos estudos culturais tem levado a uma utilização do conceito que vai muito para além desse paradigma, conduzindo a acepções substancialmente mais amplas. Não há que esconder que, como sempre acontece nestes casos, o alargamento do âmbito do conceito tende, inevitavelmente, a torná lo difuso e polissémico. E assim, parafraseando um aforismo de Karl Kraus sobre a linguagem, a verdade é que hoje em dia, quanto mais de perto olhamos para a palavra “tradução” mais de longe olha ela para nós. Pela simples razão de que, como escreve Susan Bassnett (2001) – não se mostrando, aliás, grandemente preocupada com o facto –, quanto mais amplo se torna o escopo dos estudos de tradução, menos evidente se vai tornando o que significa o conceito de tradução. Mas, por outro lado, e é isso que permite a despreocupação de Bassnett, é indesmentível a produtividade teórica transdisciplinar de um conceito assim alargado, o que o tem levado a ocupar um lugar cada vez mais importante, não só no âmbito dos estudos culturais, mas também da sociologia, da antropologia, das ciências políticas, isto é, no âmbito, não só das humanidades, mas também das ciências sociais em geral. Deste modo, a tradução, como objecto de análise, não pode, claramente, ser já abarcada a partir de uma perspectiva disciplinar, antes obriga a convocar toda uma multiplicidade de saberes.
Na verdade, se em todas as épocas há conceitos que, em determinado momento, atingem uma circulação tão ampla que parecem, por si sós, ser capazes de nomear tudo o que constitui as determinantes dessa época, um desses conceitos, nos nossos dias, é, sem dúvida, o de tradução. Pode dizer se sem qualquer reserva que a tradução se tornou uma palavra chave da nossa contemporaneidade, uma metáfora central do nosso tempo. Potencialmente, toda a situação em que se procura fazer sentido a partir de um relacionamento com a diferença pode ser descrita como uma situação translatória. Nesta acepção ampla, o conceito de tradução aponta para a forma como não apenas línguas diferentes, mas também culturas diferentes e diferentes contextos e práticas políticos e sociais podem ser postos em contacto de forma a que se tornem mutuamente inteligíveis, sem que com isso tenha que se sacrificar a diferença em nome de um princípio de assimilação. O que significa, dito de outro modo, que a questão da ética da tradução e da política da tradução se tornaram tanto mais prementes nos nossos dias.
Poderá dizer se que, na era da globalização, a necessidade da tradução se torna cada vez menos evidente e a tradução mais supérflua. O uso do inglês como lingua franca pode, é certo, significar, como acontece, por exemplo, em tantas reuniões internacionais, a criação de um espaço “neutro” de comunicação, na linha daquela lógica instrumental que ecoa no lugar comum do inglês como esperanto do nosso tempo. Mas o inglês é a lingua franca da globalização por ser uma língua imperial, a língua, presentemente, do único império que subsiste na cena mundial. E a lógica do império, que é a de um centro universalmente englobante, conduzido pelo objectivo da assimilação integral, é essencialmente monológica e monolingue. De uma tal perspectiva unificadora, para a qual a diferença não tem que ser tida em conta e, portanto, no fundo, não existe, a tradução, de facto, é irrelevante. Na verdade, uma definição possível da globalização hegemónica é a de um processo de homogeneização sem tradução, o que corresponde, noutro plano, ao processo através do qual um país hegemónico está em condições de promover os seus próprios localismos na forma do universal ou do global.
É necessário, contudo, ter resolutamente em conta que, como tem mostrado a teoria da globalização, a aparência de homogeneidade é, em muitos aspectos, enganadora. As novas tecnologias e a capacidade virtualmente infinita de manipulação da informação que elas proporcionam permitem e estimulam o ajustamento de produtos culturais globais a lógicas locais. E permitem, em consequência, de modo acrescido, a possibilidade de uma intervenção activa dos destinatários, transformando se, assim, num domínio em que a interpenetração do global e do local pode ocorrer de múltiplas formas, nem sempre previsíveis. Os processos de globalização são, desta perspectiva, processos heterogéneos e fragmentados (Appadurai, 1996: 32; Santos, 2001) e também no campo cultural “globalização” denota um processo que não é uniforme, mas internamente complexo, contraditório e conflitual. Por outras palavras, as fronteiras, nomeadamente as fronteiras culturais, não estão a desaparecer, estão, antes, a ser deslocadas, e mesmo multiplicadas. Sendo assim, a ilusão de homogeneidade não é mais do que uma ficção através da qual uma globalização hegemónica torna invisíveis aquelas diferenças, desigualdades e contradições que uma globalização contra hegemónica toma a seu cargo denunciar. E se, como referia há pouco, podemos pensar a globalização hegemónica como uma globalização sem tradução, a própria noção de globalização contra hegemónica depende por inteiro de processos de tradução, já que, por definição, assume uma posição crítica relativamente a todo o centralismo e universalismo e recusa a noção de um centro transcendente, procedendo, pelo contrário, através da articulação da diferença e da relação intercultural.
Isto leva nos, inevitavelmente, à questão das identidades. Como escreve Stuart Hall (1992), pensar hoje a questão das identidades, nomeadamente da identidade cultural, releva, não de um conceito de “tradition”, mas de “translation”, já que o conceito de identidade apenas pode ser pensado, não a partir de um núcleo substancial, mas sim da posição ocupada numa rede relacional. Isto é, não é admissível a equação simples entre cultura e identidade a que Eagleton (2000) chama “culture as identity” e que assenta numa definição de cultura como um conteúdo substancial em última análise supra histórico, legitimado pelo corpo da tradição e delimitado como uma espécie de território interior. Pelo contrário, como lembra Bakhtine:
Não deveria conceber se o domínio da cultura como um todo espacial, que é delimitado por fronteiras, mas dispõe também de um território próprio. No domínio da cultura, não existe um território interior: ele situa se inteiramente nas fronteiras, por toda a parte, por cada um dos seus elementos, há fronteiras a passar […]. Todo o acto cultural vive, no essencial, nas fronteiras. (Bakhtine, 1979: 111)
Há cultura onde há interacção e relacionamento com o diferente, nos termos do que Bakhtine designa como a “autonomia participativa” de todo o facto cultural (ibid.: 111), isto é, os conceitos de cultura e de fronteira requerem se mutuamente, mas de uma forma que é dinâmica e não estática, que é heterogénea e não homogénea. Por outro lado, pensar a heterogeneidade interna das culturas significa, naturalmente, conceber a tradução não apenas como tendo a ver com relações interculturais, mas também com relações estabelecidas no plano intracultural.
É inevitável neste momento uma referência à questão do multi¬culturalismo. É que, paradoxalmente, uma certa versão do conceito de multiculturalismo também dispensa a tradução e, neste sentido, não é senão a imagem especular da atitude imperial. Se por multiculturalismo se entende a simples coexistência de culturas que não têm que interagir e são entendidas como fechadas em si próprias e auto suficientes – de acordo com a imagem corrente do mosaico, cujas peças têm limites bem definidos e se encontram simplesmente justapostas (Friedman, 1998) – se entendermos o multiculturalismo desta forma então, de facto, a tradução torna se supérflua. As consequências políticas disto são bem conhecidas, e, no extremo, desembocam na versão de extrema¬ direita representada no discurso de um político populista como Le Pen. Mas, no fundo, é essa mesma versão de multiculturalismo que subjaz ao bem conhecido e assaz controverso modelo do “clash of civilisations” proposto por Samuel Huntington. Como é sabido, este modelo baseia se no pressuposto da essencial intraduzibilidade das culturas. Exprime assim, a meu ver, a forma acabada de uma insânia da identidade, como lhe chamou Thomas Meyer (1997), assente numa concepção da cultura como um bloco monolítico cuja única forma possível de relação com as outras culturas, igualmente concebidas como monolíticas, é, na melhor das hipóteses, a simples coexistência ou, na pior, a guerra das civilizações. Como escreve Huntington: “Sabemos quem somos quando sabemos quem não somos e contra quem somos” (Huntington, 1996: 21). Nenhuma teoria da tradução pode, naturalmente, fundar se numa perspectiva como a assim expressa, assente numa lógica de mútua exclusão e na definição da fronteira como linha divisória e não como espaço de encontro e de articulação.
Se, pelo contrário, aceitamos o princípio de que qualquer cultura é, em si própria, necessariamente incompleta e de que uma cultura auto suficiente e internamente homogénea é coisa que não existe, então a própria definição de cultura tem de incluir aquilo a que chamaria intertraduzibilidade. Isto é, ser em tradução é, desta perspectiva, uma essencial marca definidora do próprio conceito de cultura. No pressuposto de que, como lembra Wolfgang Iser, a traduzibilidade implica a “tradução da alteridade sem a subsumir em noções preconcebidas”. Por outras palavras, como escreve ainda Iser, no acto de tradução “uma cultura estrangeira não é simplesmente subsumida no nosso quadro de referência; pelo contrário, o próprio quadro é sujeito a alterações para se adequar àquilo que não se encaixa nele” (Iser, 1994).
Mas se é o quadro de referência que tem de ser posto em questão e redefinido, então são também as relações de poder que têm de ser postas em questão e redefinidas. O acto de subsumir, de assimilar, corresponde, como pode ler se, nomeadamente, em Adorno, a exercer poder no domínio conceptual. Autores como Anibal Quijano ou Walter Mignolo têm vindo a significar esta noção a partir do conceito de colonialidad ou coloniality (Quijano, 1997; Mignolo, 2000). Na sua obra de 1998 The Scandals of Translation, significativamente subintitulada Towards an Ethics of Difference (Venuti, 1998), Lawrence Venuti fornece exemplos extremamente reveladores da forma como a busca de transparência, de assimilação perfeita ao contexto de chegada, se exprime em modos de familiarização através de processos de elisão e de transformação forçada que correspondem à imposição das ideologias ou valores do centro e de padrões, em última análise, de tipo colonial. Um dos exemplos mais chocantes aduzidos por Venuti refere se a uma história dos povos mexicanos publicada em edição bilingue, em inglês e castelhano, no Correio da UNESCO. Na versão inglesa, “antiguos mexicanos”, surge traduzido como “Indians”; “sabios”, como “diviners”, adivinhos; “testimonias”, como “written records”, revelando o menosprezo sobranceiro pelo conhecimento transmitido através da tradição oral (Venuti, 1998: 2). São exemplos reveladores de como um conhecimento rival do racionalismo eurocêntrico não surge reconhecido e valorizado na sua alteridade no acto de tradução, antes é simplesmente vazado no molde da modernidade ocidental, implicitamente assumido como o único válido.
Uma ética da diferença, nos termos de Venuti, implicaria, justamente, a crítica a um conceito sobremaneira gasto e abusado como o conceito de diálogo. Não basta, de facto, usar a palavra, como uma espécie de mágica panaceia universal, o que é decisivo, evidentemente, é a forma como surgem definidos os termos do diálogo. E, como é fácil e frequentemente observável em contextos pós coloniais, a oferta do diálogo, se não for acompanhada da disponibilidade para pôr em causa os quadros de referência dominantes, acaba por não ser mais do que um exercício de poder – não admira que a parte subalterna ou periférica exprima muitas vezes uma recusa dessa oferta, normalmente para grande, mas afinal injustificada surpresa da parte ofertante. É a pensar numa prática de tradução deste tipo – no fundo, a mesma já escalpelizada no clássico de Edward Said, Orientalism, uma obra que em boa medida, mesmo que não explicitamente, é sobre tradução – que Michael Dutton deu a um longo e notável artigo publicado em 2002 na revista Nepantla. Views from the South o título “Lead us not into translation” (traduzo, apesar de tudo: “não nos deixeis cair em tradução”). Aqui, o autor, situando se na perspectiva dos Estudos Asiáticos pós coloniais e apoiando se nas teses de Said, desenvolve uma crítica muitíssimo informada ao modelo de tradução a que foi tradicionalmente submetida a figura do Outro no âmbito da ciência ocidental, um modelo virado, em última análise, para a simples corroboração das referências de partida e, portanto, destinado a desvalorizar, ignorar ou silenciar tudo o que nesse Outro se apresentava como heterogéneo ou discrepante relativamente a essas referências.
O artigo de Michael Dutton vem na linha de outros múltiplos estudos críticos dos pressupostos de uma epistemologia colonial. Esta epistemologia opera por sistema através da construção de uma topografia do mundo cuja parcialidade se exprime e se oculta através de uma retórica do universal que é também uma retórica da tradução entendida como redução do outro ao mesmo. O conceito de tradução que sobressai ex negativo das perspectivas que são críticas dessa epistemologia, um conceito coincidente com a acepção ampla que tenho estado a discutir, é, necessariamente, crítico da simples noção de um diálogo de culturas. Uma vez que implica uma negociação das diferenças, ele está para além de um conceito transparente de diálogo, o que implica também que recusa situar se simplesmente na posição hermenêutica expressa na gadameriana “fusão de horizontes”. É verdade que, como lembra John Frow, a figura do Outro é inevitavelmente produto de uma construção cultural que decorre da lógica imanente da cada formação cultural específica:
[…] não pode haver um simples contraste entre a ordem cultural “deles” e a “nossa”, uma vez que aquela é gerada como um objecto cognoscível a partir do interior da “nossa” ordem cultural. A divisão entre “nós” e “eles” funciona como uma imagem de espelho – uma inversão, que nos diz apenas o que queremos saber a respeito de nós próprios. (Frow, 1996: 3)
É num sentido análogo que a semiótica da cultura de Jurij Lotman desenvolve o conceito de fronteira como componente elementar de todas as práticas culturais, enquanto forma de organização do mundo que, ao mesmo tempo que define o “outro” como exterior e estranho, constrói, em simultâneo, o “eu” (cf. Belobratow, 1998). Dizer isto corresponde a dizer que o conceito de alteridade é sempre inseparável dos processos de tradução que permitem a relação com essa alteridade. E a questão está então, justamente, em saber qual é o modo dessa tradução, isto é, se esses processos vão no sentido da simples assimilação e da redução ao idêntico ou, pelo contrário, vão acentuar o não idêntico, o que corresponde a manter viva a tensão e a mútua estranheza entre os contextos de partida e de chegada.
É no âmbito desta reflexão que o conceito de fronteira revela, a meu ver, toda a sua produtividade. A razão translatória é uma razão cosmopolita, mas não no sentido em que se situa para além das fronteiras e sim, pelo contrário, pela capacidade que revela de se situar na fronteira, de ocupar os espaços de articulação e de negociar em permanência as condições dessa articulação. Dito de outro modo: a razão cosmopolita que é a do tradutor é, ao mesmo tempo, inerradicavelmente, uma razão fronteiriça. Neste sentido, a função do tradutor, para usar a sugestiva expressão de Tobias Döring, não é a de um “go-between”, mas sim de um “get between”, cuja tarefa não é levar e trazer, mas antes, literalmente, intrometer se, meter se no meio (Döring, 1995).
É, na verdade de um “terceiro espaço” de que falamos quando falamos de tradução nos termos em que tenho vindo a fazê lo. Não ignoro os riscos deste conceito, desde logo os que estão implícitos no uso de uma imagem espacial neste contexto – não se trata, evidentemente, de um “espaço” no sentido literal. Não se trata também de uma instância transcendente, nem de um princípio regulador, trata se tão só do espaço da “intromissão” a que me referia há momentos, uma intromissão que, exercendo-se no ponto de contacto entre o mesmo e o outro, na fronteira, mantém presente uma relação de tensão entre os dois quadros de referência envolvidos, recusando qualquer princípio de síntese ou de assimilação que possa representar uma forma de canibalização e potenciando toda a escala das interacções. Podemos dar designações diferentes ao resultado dessa intromissão. Doris Bachmann-Medick, e não só ela, chama lhe texto híbrido (Bachmann-Medick, 1996); Lawrence Venuti (1998), assimilando o conceito de “literatura menor” de Deleuze e Guattari, sugere que a tarefa do tradutor consiste em produzir textos “menores”, isto é, textos que recusam a transparência da comunicação e afirmam a densidade de uma linguagem estrangeira aos códigos discursivos dominantes no contexto de chegada. Em todo o caso, do que se trata é de recusar a retórica da autenticidade – o pressuposto de que o tradutor é um traidor surge plenamente assumido pela positiva, como traço definidor da atitude de intromissão consubstancial à sua função. E, naturalmente, a visão corrente de que no processo de tradução algo inevitavelmente se perde passa para segundo plano, em benefício da percepção de que também, eventualmente, muito se pode ganhar.
É escusado sublinhar a precariedade e a natureza por definição instável do espaço de fronteira. Uma das consequências da afirmação de uma lógica terceira em relação às duas partes envolvidas está em que os topoi, literalmente, os lugares comuns das culturas em presença deixam de poder desempenhar o papel de premissas da argumentação e tornam se eles próprios objecto de argumentação e de debate – de negociação. Este é um aspecto sublinhado num texto de Boaventura de Sousa Santos que deixei para o fim desta minha comunicação, mas que constitui, a meu ver, um dos testemunhos mais relevantes da importância que o conceito de tradução tem vindo a assumir para o conjunto da teoria e, em particular, da teoria social contemporânea. Refiro me a um artigo intitulado “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”, publicado no no. 63 da Revista Crítica de Ciências Sociais (Santos, 2002). Na linha de trabalhos anteriores, a argumentação do autor desenvolve se, em aspectos essenciais, a partir do conceito de hermenêutica diatópica, definida como uma posição epistemológica que, perante culturas diferentes, recusa hierarquizá las e opta antes por, reconhecendo as incompletudes mútuas, valorizar selectivamente o que, em cada cultura, mais pode contribuir para a intensificação de uma relação dialógica. Correlativamente, a tradução surge definida como “um procedimento que não atribui a nenhum conjunto de experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva nem o estatuto de parte homogénea” (ibid.: 262).
O conceito de tradução é aqui verdadeiramente encarado como metáfora central para a situação contemporânea, nomeadamente, enquanto núcleo de uma noção de transformação social. É a tradução que permite “ampliar o campo das experiências” de modo a que se possa “avaliar melhor as alternativas que são hoje possíveis e disponíveis” (ibid.: 274). Concomitantemente, uma perspectiva pós colonial da tradução permite abrir espaços de saber e terrenos de acção demasiado tempo fechados em dicotomias excludentes. Um dos vários exemplos aduzidos por Boaventura de Sousa Santos diz respeito à questão dos chamados conhecimentos rivais. A reformulação pós colonial, em torno da questão da biodiversidade, da relação entre a biomedicina e as biotecnologias desenvolvidas nos países centrais e os conhecimentos da medicina tradicional dos países do Sul permite a criação de inteligibilidades mútuas e a revalorização de saberes antes vítimas do epistemicídio colonial ou imperial. E este processo pode, naturalmente, ser tratado como um processo de tradução.
Ao debruçar se, na parte final do seu texto, sobre as “condições e procedimentos da tradução” é visível como Boaventura de Sousa Santos, seja explicitamente, como quando lança mão da noção de zona de contacto pedida de empréstimo a Mary Louise Pratt e a que atribui um significado central, seja de modo implícito, está a dialogar com percepções que são as dos estudos de tradução contemporâneos e que, ao longo da minha intervenção, fui procurando equacionar. Refiro me a tópicos como a problematização do conceito de original e da prioridade do original; a visão da tradução como modo de negociar diferenças e de tornar manifesta a diferença; a tradução como fenómeno não apenas intercultural, mas também intracultural; a tradução como condição de auto reflexividade das culturas. A presença destes tópicos, que enumero sem qualquer preocupação sistemática, testemunha bem como, no panorama actual do conhecimento no âmbito das ciências sociais e das humanidades, o conceito de tradução tem vindo crescentemente a tornar se um ponto de encontro central. São certamente muitas as configurações possíveis desse ponto de encontro; investigar, nos seus contextos próprios, os diferentes modos de tradução do conceito de tradução eis uma tarefa que, sem dúvida, não poderá deixar de ser aliciante.
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Original in English
© António Sousa Ribeiro Eurozine
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